A “desrejeição” a Temer e a pinguela de um tempo que se vai
Na última sexta-feira de um ano que perece por ter sido o último de um ciclo histórico, insisto ainda mais uma vez e abro os jornais. Lutar com as palavras, essa luta mais vã (Drummond) e recomeçar a cada manhã é a sina nesta lida de observar o mundo e ousar (tentar) traduzi-lo. A cidade anda devagar e com vagar se movimenta o pensamento na angústia de tocar uma réstia de luz e fechar o ano. O que recolher deste dia, na modorra que se estende nesse período entre o Natal e o Ano Novo?
As notícias não são boas: na Ilustrada, da Folha, a morte de Heloísa Maria Buarque de Holanda, Miúcha. Filha de Sérgio, irmã de Chico, ex-mulher de João, mãe de Bebel… Sendo tudo isso, foi também Miúcha, a cantora afinada, de sensibilidade aguçada, articuladora de amizades e parcerias, que acompanhava gente como Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Toquinho; a Turma do Funil… E coisas dessa sofisticação que, um dia, foi a música, a cultura e a esperança no Brasil.
No mesmo Caderno, Egberto Gismonti afirma que está colocando todo seu riquíssimo acervo — algo em torno de 900 músicas — à disposição do público, gratuitamente, na Internet. Toca-me o fato de ter decidido faze-lo após uma apresentação no interior da Áustria, quando como numa epifania se lhe revelou que as pessoas que ali foram ouvi-lo estavam lhe "dando o que têm de mais caro, o tempo de vida".
Não vivemos tempos para sofisticação ou generosidade; isto tudo parece ter-se perdido num país da delicadeza que foi abandonado ou ficou para atrás, na distância triste e irreparável do sumidouro de um espelho retrovisor. Trata-se de um Brasil que não mais existe ou que está em vias de deixar de existir. Sinto que escorre pelos dedos e estes dias de modorra nos deixam mais sensíveis.
O país vive um "nova hegemonia". E ela insiste em desqualificar o mundo que pretende superar. O faz por não compreender, por não alcançar, talvez, ou simplesmente por não compartilhar de seus valores, de sua estética, preferindo rimas pobres, harmonias simplistas, num estilo kitsch, meio-jeca, meio-country, meio-trump. E com isso a tudo demoniza num carimbo-clichê chamado de "comunista", "globalista" tudo o que pressentir a mais tênue brisa intelectual.
São estes os tempos, onde Miúchas e Gismontis parecem não caber. São os tais ciclos históricos. O momento parece indicar que um se fecha, outro se abre.
O primeiro tendo chegado à exaustão pelos exageros, pelos erros, pelas vertigens, desvios e descaminhos. Um mundo que não soube se renovar, sendo atropelado pelas revoluções da mobilidade, da super produção, da hiper tecnologia, pela explosão do consumo.
O segundo que se inicia sobre os escombros do primeiro, propondo a destruição do velho, sem saber exatamente o que edificar, numa destruição não criativa, regressiva a um passado de poucas luzes, pré e até anti iluminista.
Ao mesmo tempo o mesmo jornal diz que a rejeição a Michel Temer recuou a 62%, após ter batido extraordinários 82%. Passado o período eleitoral, para muita gente Temer ou não era tão ruim assim ou era mesmo a tal da pinguela que o país deveria atravessar, com cuidado, para não se perder no abismo sob seus pés.
Mas, a pinguela ruiu. E não foi apenas a do governo Temer. O estrago parece bem mais profundo, desconectando não somente o ciclo de erros e velhacarias do PT, PSDB e PMDB como também de duas eras.
Uma que surge, quem sabe, lá na euforia dos idos ingênuos e ilusórios de1958, com o primeiro título Mundial de Futebol, Marta Rocha, a Bossa-Nova, o Cinema Novo e a inauguração Brasília. E outra, agora, a do kitsch bolsonariano.
Então, a "desrejeição", essa reversão de um sentimento que era desamor e que hoje já é quase saudade, deve ser entendida como já a nostalgia de um tempo que se vai, sem, no entanto, nada deixar em seu lugar.
O jornal de hoje é apenas a consciência de que a pinguela se partiu, onde de algum modo ainda tentavam se agarrar o tempo e o mundo que também foram de Miúcha e de Egberto Gismonti. Feliz Ano Novo a todos.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.