Sobre “amigos secretos” e “inimigos ocultos”
Neste Natal, a maior dificuldade das confraternizações será distinguir "Amigos Secretos" de "Inimigos Ocultos", preservando pelo menos a esperança de recuperar a paz familiar. Os resíduos tóxicos do terrível processo político que estourou na cena eleitoral ainda estão no ar. E, lado a lado, há muita gente disposta a estimular essa atmosfera pouco respirável, até porque seus gases viciaram uma boa parte das pessoas. Algumas irremediavelmente.
E, claro, que interessa aos próprios protagonistas da última eleição manter essa fornalha acessa: o bolsonarismo,para blindar-se da inexperiência, dos inevitáveis erros iniciais, creditará aos tais comunistas— na fantasia que construíram — todo natural desgaste que colherão; os petistas precisarão de Bolsonaro como do ar: voltarão aos tempos da oposição sistemática, já que lhes restou pouco, quase nada, de liderança, projeto e argumento.
Ambos manterão seus campos devidamente organizados a partir dessa estratégia. Infelizmente, política também é assim. Sem muito a construir, o essencial passa ser a demolição do castelo adversário. É muito mais fácil — e politicamente manipulável — do que reconhecer erros e desvios. Então, não espere muita redenção, conciliação. A vida e a política seguem ainda sem o ajuste e diálogos necessários
Não foi à toa, por exemplo, que a diplomação dos eleitos no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo se deu em meio a gritos e urros alucinados. A eleição nunca acaba — a próxima é sempre o objetivo — e manter a claque viva e delirante é a receita fácil para a conservação do tônus muscular dos que utilizam quase nada do cérebro como instrumento do exercício da política.
Percebe-se isto por múltiplas manifestações de atores relevantes. A começar pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, que não perde chance de hostilizar seu antecessor preso nas celas da Polícia Federal em Curitiba. O twitter de sua excelência é uma metralhadora governada por alvos muito claros, a começar pela intenção de retirar a si e aos seus do foco das críticas, dos desgastes, das articulações e arranjos mal resolvidos que já frequentam redes e noticiários.
Também o PT com a retórica do golpe e da crítica generalista e superficial ao que chama de "neoliberalismo" não perde oportunidade de obter daqui e dali uma brecha de provocação que lhe garanta a constante aderência da militância. Gestos simbólicos, carregados de emoção, pela defesa do passado são mais providenciais e a quem tem pouco a dizer a respeito do futuro.
Contudo, há exceções que denunciam a precariedade geral do momento: apesar de seus muitos erros e inúmeros defeitos, difere-se dessa horda barulhenta o ex-ministro José Dirceu. Condenado, em liberdade por efeito de decisão do Supremo Tribunal Federal, o ex-dirigente do PT concedeu interessante entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, no último 19 de dezembro (leia aqui).
No tom sereno que lhe é usual, Dirceu desvia-se da algaravia, tagarelice e histeria que tomam conta destes dias. Questionado sobre a situação do ex-presidente Lula, sob o governo que se aproxima, o ex-ministro é de objetividade translúcida, capaz de fazer corar as novas gerações de candidatos e dirigentes de seu partido:
"O Lula tem de seguir. O problema do Lula independe do governo Bolsonaro. Deixa o Bolsonaro tomar posse. Nós sabemos as intenções dele em relação a 'n' questões, mas não na questão econômica. Vamos ver o que o (Paulo) Guedes vai fazer, o que o Congresso vai aprovar e como o Judiciário vai se comportar. Ele nunca escondeu o que seria em questões de política externa, de meio ambiente, maioridade penal e da mistura do Estado com a religião (…) Há questões no Brasil que temos de defender com todos aqueles que queiram estar nessa luta. Todos são bem-vindos contra o Escola sem Partido, contra a mistura do Estado com a religião e questões da democracia e das liberdades individuais. Já a agenda econômica é mais restritiva (…) Vamos esperar primeiro qual a reforma de Previdência que Bolsonaro vai propor (…) Nós somos favoráveis [ao regime único para militares, funcionários públicos e iniciativa privada]. Os militares, os servidores públicos e a iniciativa privada. Vamos procurar pontos de contato com todas as forças políticas para se fazer uma reforma da Previdência, mas não essa de privatização da Previdência."
Pessoas como José Dirceu são quadros raros e diferenciados, que, de seu modo, olham para frente; entendem a política como um processo cujo movimento não é retilíneo nem uniforme. O que exige inteligência muito além de músculos e disposição beligerante. Tipos assim fazem falta enorme ao país, ao governo e à oposição.
O que teriam dito seus companheiros: que Dirceu não é suficientemente de esquerda? E seus detratores: que se trata de um incendiário? O que Dirceu faz é algo raro nos dias atuais. Chama-se Política. Possui timing, tática, estratégia. E, à parte de suas presumíveis intenções, é legítimo.
O grande desafio da política é distinguir "amigos secretos" de "inimigos ocultos". Por isso, é preciso aprender a ouvir. A complexidade trazida pela eleição de Jair Bolsonaro exige o esforço da serenidade. Por isso, relaxe, Menino Jesus… Quebre as castanhas com vontade, mas preserve os cristais. Bom Natal a todos e todas.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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