Condições iniciais não favorecem o novo governo
Em "A Insustentável Leveza do Ser", Milan Kundera desmancha a polaridade tola e artificial entre pessimismo e otimismo. Uma escolha, uma única vez, disse ele, "é nunca". Quando se escolhe, as opções são descartadas e não se saberá o que teria sido fosse outra a decisão. Tampouco se a escolha que se fez foi a melhor ou a pior, como resumo. Sabe-se apenas o que foi, jamais o que teria sido, sem saber se outro final resultaria da escolha que não se fez.
Para Kundera, seria necessário que houvesse mais vidas de modo a que possível fosse testar as escolhas. Primeiro, a que não se fez; depois a efetivamente escolhida, por mais, uma vez, para verificação e certificação de sua consistência. E assim, alternadamente, para aquilo que não se escolheu. Duas vezes cada escolha, portanto. No mínimo, até porque quase nunca tudo o mais será constante e mudando as circunstâncias, os efeitos de uma mesma escolha também podem mudar.
Para o autor, otimista é aquele que acredita que numa hipotética quinta vida, o sujeito fará o certo. Pela experiência dos experimentos que fez, abrindo mão do capricho e da incerteza, optará pelo certo. Mas, ninguém terá cinco vidas para saber. Só se vive uma vez.
Assim, a polaridade "otimismo" e "pessimismo" faz pouco sentido. Na verdade, essas posturas da alma se equivalem; ambas são igualmente apostas; disposições do espírito. Resultados dos desejos e da torcida de cada ser. No caso da política — ou de qualquer fenômeno social –, o que realmente conta é a abordagem baseada em dados, nas experiências passadas, numa lógica da ação social conhecida nos exemplos históricos, como pistas.
Uma análise montada em premissas razoáveis, capazes de permitir inferências coerentes com dados e premissas. Não há otimismo nem pessimismo: se as premissas estão incorretas e as inferências não fazem sentido, o sujeito não é otimista, nem pessimista. Apenas está errado. Ponto.
***
Na análise do próximo governo estão premissas que precisam ser consideradas, com distanciamento e nervos de não torcedor. As condições de partida estão longe de ser as melhores, os problemas estruturais e a dinâmica política dos últimos anos são amplamente conhecidos e é ilusão acreditar que a simples eleição de novos atores e a alternância de poder venham, por si só, a estabelecer parâmetros de comportamento e alinhamento políticos muito distintos dos que estão por aí.
Se alguma coisa vier a mudar, será com o processo, a depender da qualidade com que essas mudanças venham a ser conduzidas. Nada está dado por gesto de vontade. Então, é importante saber com o que, afinal, se está lidando. Às tais premissas, portanto:
1) o sistema político brasileiro é majoritariamente fisiológico, pouco afeito à negociações ou apelos programáticos;
2) houve renovação nominalde 52% da Câmara dos deputados e de 61% no Senado; ainda assim, a maior parcela dos entrantes (novos, eleitos em 2018) já exerceu mandatos anteriores, seja na mesma Casa ou em outros parlamentos e traz consigo hábitos e costumes adquiridos;
3) embora houvesse um enorme anseio de mudança, o recrutamento e a seleção dos novos parlamentares, eleitos em 2018, foram os mesmos do passado; ainda que possa ter havido um vento de renovação, é justo imaginar que ele tenha em grande medida transportado também o pólen da tradição;
4) as direções partidárias, que não se renovaram, tendem a manter seu poder sobre as bancadas e será delas a prerrogativa de indicação às comissões e relatorias de projetos;
5) há grande intersecção entre as bancadas temáticas — se pudessem ser somados os membros de cada uma delas, a Câmara teria mais de 1200 deputados —, formam um número elevado de votos, mas mesmo assim bastante limitado em relação à euforia em torno delas;
6) as bancadas temáticas agrupam-se por interesses específicos, havendo grande dispersão quando a pauta se desvia de sua natureza primária — os costumes, ou agronegócio, ou o desarmamento ou o futebol, por exemplo;
7) os mais experientes operadores para lidar com a cultura do parlamento não foram reeleitos, o novo governo carecerá dessa experiência;
8) os principais articuladores do novo governo não possuem adequada penetração no Congresso e nem se mostram hábeis negociadores; são, majoritariamente, muito mais movidos por indignação do que por pragmatismo;
9) há uma curva de aprendizado nesse processo que, por mais rápido que se dê, depende de maturação: tentativas, erros e acertos (ao final);
10) o governo Bolsonaro precisará mostrar resultados tanto mais rápidos dada a expectativa que gerou durante a eleição como também pela dramaticidade da crise fiscal, econômica, social e política do país. Seu sucesso dependerá da qualidade do "arranque" inicial;
11) 90 milhões de eleitores não votaram em Jair Bolsonaro — assim como 100 milhões não votaram no PT —; o núcleo duro social do bolsonarismo(costumes e segurança) é bem menor que os 57 milhões de votos dados ao presidente eleito;
12) Nesses 57 milhões há enorme participação do antipetismo, o que não implica em apoio consolidado ou acrítico ao novo governo. Há expectativas, mas isto não significa o mesmo que comprometimento e mobilização política;
13) os profissionais da política em Brasília têm conhecimento disto tudo e, como profissionais, sabem que política é timinge que todo material (assim como os governos) se desgastam com o tempo.
Certo que ninguém tem controle do futuro, daquilo que será. Ainda assim, se as premissas acima estiverem minimamente corretas, aconselha-se prudência nas apostas em relação às chances de sucesso do novo governo. A dramaticidade das questões econômica e social do país é grande e podem mobilizar apenas em certa medida. Mas, sem um bom diagnóstico do presente e habilidade política, isto não basta. Bolsonaro terá pouco com que sensibilizar o Congresso ou faze-lo curvar-se à sua pauta e a metodologia de trabalho se não compreender que, antes, terá que reinventar a si mesmo.
À parte do discurso romântico de um inebriante momento de vitória eleitoral, o fato é que as condições de contorno não são exatamente favoráveis para o próximo governo. É melhor não entrar em campo de salto alto. E nada disto é questão de "otimismo ou pessimismo". Discutamos as premissas.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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