Ao vencedor, as batatas quentes do momento
Toda eleição serve para lavar a roupa suja do país, acumulada no cesto ao longo de quatro anos, para depois ser quarada sob o sol da democracia, o começar de novo. Mas, desta vez, o país sai do processo pior do que entrou. Mais dividido, mais inseguro e de muito pior humor e abertura para o diálogo. A mais complexa e tensa eleição da história do Brasil chega à reta final com muitas perdas e danos e pouco, talvez nenhum, ganho.
Se em 2014 as pessoas se dividiram entre Dilma Rousseff e Aécio Neves, desta vez foi ainda mais visceral: a disputa separou amigos, dividiu famílias, impôs muros às comunidades. Uma guerra santa que contrapôs tudo a tudo: de questões políticas à morais, de concepções de Estado à críticas ao caráter dos oponentes. O alvo principal foi o PT, que claro, tem contas a acertar, mas que também carregou todos os pecados do sistema político.
(É incrível como, de repente, ninguém mais fala de Michel Temer, Aécio Neves, PSDB, MDB e demais atores implicados com os mesmos problemas, afogados no mesmo rio e atolados na mesma lama.)
O resultado só não está definido com a vitória do bolsonarismo porque o Brasil é o país dos fatos mais improváveis. O ex-capitão e sua turma falam demais e, em virtude disto, tudo pode acontecer. O PT não jogou a toalha e ainda acredita numa virada, numa onda, numa vibração de chegada. Ao longo da semana muita gente se mobilizou, se não por amor a Fernando Haddad, em razão do medo aguçado pela retórica de Jair Bolsonaro e dos seus.
Mas, independente de surpresas, a realidade é que quem vier a vencer a disputa não vencerá de lavada, não será massacrante, nem consagrador. A quantidade de indivíduos contrariados com o resultado será enorme, nada desprezível. Improvável que se resignem imediatamente com o resultado. O país sairá dividido. E, para o eleito, não será inteligente apostar no aprofundamento dessa fratura.
Bolsonaro e Haddad tentaram expressar alguma moderação ao longo da última quinta-feira. Já perceberam que o vencedor não levará tudo. O certo é que, mais que em eleições anteriores, o discurso da vitória será de fundamental importância.
Em 2014, Aécio não ligou para Dilma, reconhecendo a derrota, se não para lhe desejar sorte, pelo menos parabenizando-a protocolarmente. Dilma, ainda mais imprudente, no primeiro pronunciamento que fez como presidente reeleita, recusou-se em ao menos citar o nome do adversário. Morreram abraçados à mesma estupidez. Em relação ao país, conhecemos as consequências da birra entre os dois.
Se a Câmara dos Deputados representa o povo e o Senado os estados, a presidência da República simboliza a nação, a unidade nacional. Jurando cumprir a Constituição, um novo presidente reafirma o pacto político. Passando a ser "o presidente de todos os brasileiros", reparando rachaduras, reconecta os grupos e o país.
Contudo, depois de tudo o que se deu nestes últimos anos, é de supor as dificuldades do derrotado para fazer o gesto de reconhecimento, seja Fernando Haddad seja Jair Bolsonaro. Se assim for, será um péssimo recomeço, ainda que não seja inédito dado o pioneirismo de Aécio.
A tensão da campanha despertou rancores que não ficarão nos palanques, nem serão páginas viradas. Precavidos, os dois lados já construíram narrativas de fraude e trapaça do adversário. De ambos os lados, restaram desrespeito e desconfiança em relação ao outro. Há poucos (ou nenhum) operadores políticos capazes de costurar esses cortes. Embora natural a disputa, processos assim são feridas abertas e purulentas, cobertas de moscas; não somente demoram a cicatrizar, como podem se alastrar pelo corpo.
Por isso, seja quem for, ao eleito caberá a prudência, o comedimento; a humildade na conquista. Para que sua vitória não seja de Pirro — a vitória que arruína —, seu discurso na noite de domingo deverá ser entendido como sincero sinal, se não de aproximação, de convivência respeitosa e democrática. Um esforço para que a guerra eleitoral não persista, então, como outros tipos de guerra ou guerra de verdade.
Se minimante perspicaz, o vitorioso perceberá que a vitória eleitoral não implica em rendição do derrotado, não indica a desforra do ganhador. Antes, requer a consciência de novo acordo onde naturais diferenças são respeitadas. E que o árbitro de qualquer conflito será a lei, não a força.
Se não for por democracia, que seja assim por, pelo menos, a mínima inteligência. Que o próximo presidente, já na noite de domingo, estenda a mão ao invés de tripudiar. Postura de estadista, cuja ausência o país se ressente. Tampouco caberá comemorar ou questionar o resultado nas ruas, de modo triunfal ou furioso. Conveniente será baixar a bola, conter radicais exaltados, não colocar tudo a perder antes mesmo de ter começado.
Compreender que se tratou tão somente de passageira e efêmera vitória ou circunstancial derrota, como deve ser numa democracia. Apenas mais uma. Como tantas que já foram e tantas outras que, espera-se, ainda virão. Ao vencido, apenas a compaixão — sem ódio; ao vencedor, as batatas quentes que lhe cabem no momento.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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