João Doria e a fetichização do PT
É possível que o debate promovido pela TV Bandeirantes, entre João Doria e Márcio França, ocorrido na noite de ontem, tenha passado despercebido pela maioria das pessoas. A atmosfera contaminada pela polarização entre antipetistas e antibolsonaristas, na eleição nacional, suga a atenção e transforma as eleições para os governos em coadjuvantes.
Essa pouca importância não é fortuita. Até porque, por parte de um dos candidatos, trata-se de transformar a disputa estadual num pastiche da eleição presidencial. É uma pena, pois dada a importância de São Paulo, seria fundamental que no estado se instalasse um foco de lucidez e moderação, uma janela para o futuro. Seria importante, só que não.
O embate paulista pouco colabora para atenuar o clima de disputa acirrada e evitar os chutes acima do joelho e abaixo do umbigo entre os adversários. O analista tenta andar no fio da navalha, encontrar aspectos positivos, mas chega o momento em que é impossível não pender, se não no elogio, pelo menos na crítica para um dos lados.
Inegavelmente, João Doria não veio ao mundo para conciliar, promover diálogos, construir consensos e o bem-estar geral, papel primordial da política e do político. A personalidade e a sobranceria lhe dão um estilo nada agregador. Candidato 24 horas por dia, desde 2016, não se furta à provocação e não hesita em abraçar o irracionalismo mesmo que isso signifique, no longo prazo, atear fogo às vestes — como é o caso de sua rejeição de 53%, na Capital, de acordo com o Ibope.
Explora o desgaste do PT, menos por convicção do que por conveniência. É um cruzado, um Napoleão de guerra imaginárias, tentando liquidar hoje o inimigo que, pelo menos em SP, morreu ontem. E elimina assim o amanhã, pois queima pontes num país que precisa reconstruí-las.
Na eleição paulistana deu certo: em 2016, mobilizou 1/3 do eleitorado contra o partido do prefeito adversário da ocasião, Fernando Haddad. Fechou essa parcela em torno de si, sendo também beneficiado pelo alto grau de abstenção, nulos e brancos naquela eleição. Venceu no primeiro turno, um feito se tratando da capital.
De fato, obteve a maioria dos votos válidos. Mas, de verdade, de verdade, quem levou o caneco naquela ocasião foi o "não voto". Enquanto Doria obteve 33,74% do eleitorado, a turma do Lava as Mãos somou 33,84%. Regra do jogo, foi legitimamente conduzido ao cargo no qual manteve-se no palanque, numa campanha de auto impacto que ao final prejudicou muito o padrinho, Geraldo Alckmin.
Mas, avaliou ter descoberto um grande filão: bater no PT. Na eleição deste ano, passou a maior parte do primeiro turno atacando um inexpressivo Luiz Marinho, candidato de Lula em São Paulo. Não colou do mesmo modo que há dois anos; Marcio Franca e Paulo Skaf amealharam grande parcela do eleitorado e levaram a eleição para o segundo turno.
Estabelecida a realidade de que, desta vez, não teria a mesma sorte de 2016 e que sua vitória não seria a barbada que imaginou, o ex-prefeito se viu na obrigação de debater cara a cara com um adversário hábil, de modo menos dispersivo e mais exigente do ponto de vista propositivo, característica da eleição de segundo turno.
Sem capacidade de ampliação, abriga-se na zona de conforto, apresentando-se mais uma vez como pretenso juiz e verdugo de Lula, de seu partido e, agora, de toda a esquerda. Lugar, no entanto, já ocupado com sucesso por Jair Bolsonaro. Por conta disto, viu-se obrigado a grudar no ex-capitão de modo constrangedor para a tradicional vaidade paulista. "Larga o Bolsonaro, João", gritou França durante o debate.
Quem desatento ou desinformado ao ouvir seu discurso se imaginará no contexto da Guerra Fria; acreditando que há em Moscou um Josef Stálin, que um muro em breve será erguido na Alemanha, que Fidel Castro desencaminha os jovens da América Latina, que Luiz Carlos Prestes e Leonel Brizola estão prontos para o assalto final ao poder, no Brasil. Se muito disto já era delírio no passado, o que dizer de hoje?
Mas o que fazer, se PT não há mais no estado? Nominar um inimigo de ocasião que faça as vezes do ausente. Para isso, esforça-se em transformar Márcio França num perigoso esquerdista dado o simples nome de seu partido. A legenda de França é tão socialista quanto o PSDB, hoje, é socialdemocrata. A caricatura que procura pintar, "Márcio, o vermelho", faz pouco sentido.
Mas, a questão nem é esta. Pior é a importância que São Paulo poderia tomar no debate nacional e que está sendo desperdiçada por essa caricatura de Guerra Fria.
O PT é merecedor de críticas, não admitir isto talvez tenha sido o maior equívoco de Fernando Haddad. Mas, transformar o partido num fetiche, cultuando-o pelo avesso, não é apenas oportunismo. É, sobretudo, retirar São Paulo de um sério e fundamental debate para o país: a necessidade de recompor a unidade, passada a tempestade nacional, reunindo os cacos, após a mais agressiva e destrutiva eleição federal.
Transformar o estado em trincheira ideológica ilusória contra o petismo e esquerda em geral apequena o debate e o estado. Isto, Jair Bolsonaro já faz e hoje é dele a supremacia neste campo no país e em São Paulo, em particular. Restaria aos paulistas colocarem o debate em outro patamar. A redundância de personagens e temas é, porém, cansativa. Márcio França bem que resvalou no tema. Mas, a marqueteira fetichização do PT, levada ao paroxismo, não permitiu que o assunto proliferasse.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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