Não se deve confundir solidariedade pessoal com adesão eleitoral
Superados o primeiro impacto e a fase de óbvios repúdios ao atentado que vitimou Jair Bolsonaro, cumpre iniciar reflexão mais profunda em relação às causas e aos efeitos do fato. A primeira reação do mercado financeiro foi, no mínimo, curiosa para quem não compreende sua dinâmica. Como podem melhorar indicadores econômicos importantes quando e em virtude de um candidato à presidência da República ter recebido uma estocada bruta e estúpida que poderia levar-lhe à morte? Como um fato tão deplorável poderia ser, afinal, entendido como positivo?
Operadores financeiro respondem automaticamente aos fatos com a pretensão de adiantar-se às suas consequências. Trata-se de um jogo de compra e venda, onde sai ganhando quem, sem trocadilho, for mais rápido no gatilho. Não raro, os cálculos são apressados e as análises simplistas. O "racional" desta vez foi o seguinte: a vitimização de Jair Bolsonaro o favorecerá eleitoralmente, podendo leva-lo à vitória. Bolsonaro, assessorado pelo economista Paulo Guedes, promete um governo pró-mercado, de liberalização radical da economia e privatização de empresas estatais.
Logo, se o atentado o vitimizar e se a vitimização o favorece, favorecendo também os interesses de mercado, então, viva ao atentado. Simples assim. Só que não.
Em primeiro lugar, porque o principal ativo de um país é a sua democracia. Colocá-la em risco pode até, supostamente, trazer ganhos imediatos, mas no longo prazo, a incerteza de regras e o abalo das instituições cobrarão um preço altíssimo e todos, no final, perderão. Claro que sempre restará a alternativa de "sair antes", vender tudo e realizar lucros. Mas, é uma dinâmica pouco saudável, além de arriscada.
Em segundo lugar, porque nada está "dado": as consequências do atentado ainda virão e ninguém consegue exatamente antecipá-las. Logo, é muito provável, sim, que Jair Bolsonaro ganhe votos, depois do incidente do qual foi vítima. A dramatização de uma eleição e a martirização de candidatos funcionam sempre como um apelo ao eleitor e é claro que há eleitores suscetíveis a isso.
Difícil, no entanto, é afirmar quantos votos; se suficientes para superar a elevada rejeição que Bolsonaro carrega. O mais certo é que o ex-capitão tenha, agora, sim, consolidado os eleitores que já haviam aderido a ele, como também possa atrair pessoas que, por algum motivo, se sentiam constrangidas em declarar o voto – o chamado "voto envergonhado"–, mas que já eram simpatizantes. Um nível de sensibilização de eleitores antes indecisos também é razoável. Mas, em qual proporção?
Não há, porém, elementos capazes de garantir como e porquê eleitores que antes o rejeitavam passem agora automaticamente ao seu apoio; que eleitores que desconfiavam de sua retórica passem a aprova-la. Não se deve confundir a solidariedade natural de momentos assim com a automática transferência de votos. É plenamente possível repudiar o atentado e ao mesmo tempo rejeitar o candidato. Repúdio a um e apoio a outro são elementos distintos.
Passada a comoção, é possível que uma reflexão mais racional do fato ganhe espaço. Suas raízes, infelizmente, estão no processo de radicalização política que se estabeleceu no Brasil nos últimos 4 anos. E Jair Bolsonaro é um dos símbolos desse processo, ainda que possa não ser o único. Ao mesmo tempo que a solidariedade existe pode também ser despertada uma consciência de que políticos que propõe a liberação do uso de armas, por exemplo, acabam levando poder desmedido a malucos, como parece ser o caso do sujeito que praticou o atendado na tarde de ontem.
A eleição não será depois de amanhã; há, na verdade, um mês pela frente, até que se definam os nomes para o segundo turno. É verdade que novos fatos podem ainda piorar a situação, que uma escalada de violência deve ser evitada e se houver precisará ser contida. Mas, também é possível que um clima de esclarecimento e racionalidade, levando a repudiar qualquer modo de radicalismo, possa se estabelecer. Por que não?
Assim, pode-se apostar nessa "ponta" também; por quê ela seria menos razoável que a anterior, a que aposta na comoção eleitoral e na vitória de Jair Bolsonaro?
O raciocínio contrafactual torna-se útil: tivesse o ex-presidente Lula sofrido um atentado, por que os eleitores de Bolsonaro e Geraldo Alckmin, por exemplo, teriam que necessariamente passar a votar no PT? Os assassinatos de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, não resultaram no favoritismo do PSOL nem da esquerda, automaticamente. A queda do avião que levou à morte Eduardo Campos e toda a tripulação do voo não foi suficiente para dar a vitória à Marina Silva. Por que agora seria diferente?
Mais uma vez é conveniente assinalar: não se deve confundir solidariedade com adesão. A primeira não leva natural ou necessariamente à segunda. Com o tempo, à comoção podem-se impor mecanismos de ponderação. Então, calma. Tem muita estrada pela frente.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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