Um debate que não justifica horas sem sono
Começa que não faz o menor sentido; o debate dos presidenciáveis na TV, neste primeiro turno, nada mais é que um espetáculo sem graça que apenas por ironia ou sacanagem do destino ocupa o primeiro lugar no trending topics do Twitter mundial. Seu nível e espontaneidade assemelham-se a uma gincana de ensino médio, uma simulação de colegiais estranhos ao assunto e ao conteúdo para a qual o professor, constrangido, não dará mais que meio ponto ao final do bimestre.
Todavia, acontece, é inevitável, sério e pra valer. É isso aí mesmo o que se tem: um debate de sexta feito por candidatos de segunda. Vontade de ir ler um livro, ouvir música, dormir mais cedo. Tomar um porre. Qualquer coisa que retire desse constrangimento e afaste essa vergonha alheia.
Pelo WhatsApp, um ex-aluno pergunta: "Boa noite, mestre. Acompanhando o debate?". Repondo: "é… tenho uma profissão de m…, meu amigo. Inevitável acompanhar… Esse modelo faliu". Como avaliar candidatos eventualmente sérios, quando o todo é ópera bufa?
Mas, é preciso encarar o Brasil como é – ou pelo menos aquilo que se tornou. Deixamos o tempo de ilusão da Bossa Nova, do Cinema Novo, da construção de Brasília do Bicampeonato Mundial para darmos de cara com a realidade de um futuro que não se cumpriu. Foi o passar do tempo que não para que nos trouxe aqui; o debate e seus personagens são expressão do fracasso do tempo que passou.
Quando Jair Bolsonaro jacta-se de "no seu tempo" ser tudo diferente, se lhe denuncia o caráter regressivo. Evoca o passado, sem saber que o tempo não volta sem desconhecer que foi ele, o tempo errático, que moldou o presente. Aliás, antes de questionar Marina Silva, Bolsonaro parece consultar a cola/anotação que traz na palma da mão. Tempo de falta de memória e tapeação.
Numa exibição de patentes menores – cabo versus capitão — muito maior do que de propostas, o bombeiro fogo-fátuo Benevenuto Daciolo ergue a Bíblia e cospe para o alto o farisaísmo que lhe voltará ao rosto. O pior é imaginar que personagens assim possam ecoar e representar de verdade, que não sejam apenas bizarrice e folclore.
Constrangidos, os demais postulantes, aprisionados cada um nos seus pecados, tampouco se destacam. Teriam algo a dizer? Ciro e Alckmin insinuaram escaramuças relevantes, Marina se contrapôs aos exageros de Bolsonaro, mas não se sabe o que mais poderiam dar fosse mais qualificado o ambiente. O certo é que nesse modelo há pouca brecha para debater a sério.
O leiaute do palco é simples: um semicírculo de candidatos e mediadores, ao centro uma rinha – Ciro Gomes chamou de ringue — onde, de dois em dois, os candidatos se sucederão. A maioria faz perguntas sem resposta e respondem aquilo para o que não foram perguntados. Trata-se de arte da embromação ou é mesmo um diálogo de surdos? Cada um almeja ouvir apenas o próprio som. Como vencer o Minotauro e escapar do labirinto com heróis assim?
Foram raros os momentos que valeram as horas de sono. A emissora de televisão nada tem com isso; assim como a sociedade, é vítima da mesma cilada: um sistema político que pariu mais de trinta partidos; na maior parte, irrelevantes e fisiológicos. Descolados da sociedade, apartados da realidade, são representantes de si próprios.
Pode-se contabilizar tudo e marcar a soma na caderneta de dívidas do Supremo Tribunal Federal. Foi dele a suprema irresponsabilidade de barrar, na canetada, a cláusula de barreira que colocaria alguma racionalidade ao processo.
Sim, vítima a sociedade é também algoz: lavar as mãos e renegar a política, ao longo dos anos, não gera apenas vazio mas também degeneração. E dá no que deu.
Ao contrário do que disseram candidatos e organizadores ao final do encontro, a verdade é que debates assim ajudam pouco; são vazios e pouco produtivos. Apenas cumprem tabela. Por maçantes e pouco esclarecedores, não só esvaziam o interesse do público como também avacalham a beleza do conflito de ideias, liquidando no futuro a esperança na construção de consensos. Difícil imaginar que os próximos possam ser piores – ainda que no Brasil o fundo do poço seja falso.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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