Um enigma para Fernando Haddad
Com o avanço do processo eleitoral, os principais atores políticos percebem o esgotamento do tempo das firulas. Faz lembrar Jackson do Pandeiro, "esse jogo não é um a um"; tem hora para acabar e precisará definir um vencedor. Os debates começaram e ocorrerão às pencas, logo mais será o Horário de Propaganda Eleitoral, a votação do primeiro turno… Ainda que, em alguns casos, o processo seja caótico, ao final o pragmatismo terá que se impor.
Como cálculo, a estratégia do Partido dos Trabalhadores é relativamente simples, fácil de compreender: arrastar o processo e dar sobrevida eleitoral ao ex-presidente Lula, tornando-o vítima, na esperança de que sua martirização se consubstancie no milagre da hipotética transferência de votos para seu candidato à presidência da República e os demais postulantes nos estados.
Faz sentido, sobretudo, porque não haveria alternativa, dadas as circunstâncias. O PT precisava ganhar tempo e, como disse o gato de Alice, "para quem não sabe onde ir, qualquer caminho serve". Chegou até aqui. Contudo, a retórica oculta outros detalhes e nuances importantes, os quais cumpre esclarecer.
Lula é inegavelmente o único líder e o único ícone da legenda. E, por toda história do partido, foi sua única perspectiva séria de poder. Maior que o PT, se impôs às diversas correntes da legenda, à inesgotável disputa por formalismos ideológicos e à mais variadas facções, corporações, antigos e novos movimentos que compõem o mosaico petista.
A ausência do ex-presidente não implica apenas um vazio na disputa eleitoral do país. Ela também decreta aberta a luta interna no PT e na esquerda nacional. Vazio seu trono, haverá trepidação naquele solo. O pós Lula colocará em risco o equilíbrio interno e a hegemonia externa.
Exatamente por isso não houve acerto em torno de uma chapa única, agregando as candidaturas do campo político. O PT não se curvaria a Ciro Gomes, Manuela D'Ávila, Guilherme Boulos e menos ainda à Marina Silva, equivocadamente não mais considerada pelo petismo como política de esquerda. Em razão da natureza íntima de seus membros e pretensão política de seus grupos, isto não ocorreria jamais, pois seria aceitar um papel coadjuvante – maior tristeza para quem viciou no protagonismo.
Esse raciocínio se reproduz na quizila interna. Ao definir seu substituto na corrida eleitoral, é provável, que no médio prazo Lula acabe por indicar seu herdeiro partidário — mesmo que contra a vontade. Vencendo a eleição, a situação está posta: Fernando Haddad, por motivos óbvios, passa a liderar o processo político nacional, no geral, e petista em particular. Mas, mesmo derrotado, o fortalecimento político do ex-prefeito será inequívoco, alterando a correlação de forças no jogo interno, deixando para trás postulantes recônditos — hoje e no futuro.
É inegável que, passada a eleição, a imagem do ex-prefeito restará amplamente difundida por todo território. Também é plausível que a empatia que possui com o "petismo social" — se diferencia da nomenclatura partidária — se expanda tornando-o a maior referência no campo da esquerda, pós Lula. Qual Bolsonaro em caso de derrota, Haddad estará páreo das futuras eleições nacionais. Sendo jovem, poderá repetir o itinerário do ex-presidente: três derrotas até a vitória.
Vem daí o mau humor e a má vontade de parte da direção petista. A resistência ao seu nome, a insistência em limitar seus movimentos, a definição de uma vice que em nada ampliará eleitoralmente; a diligente vigilância sobre o Plano de Governo e o estreitamento das propostas econômicas são também, em parte, fruto da disputa.
Tudo isto compreende tutela sobre o candidato que a má fortuna de Lula colocou à frente da chapa do PT, sem que seja ele um petista típico e versado na dinâmica política partidária. Dessa forma, não foi apenas grosseira a falsamente tola declaração de Gleisi Hoffmann de que Haddad seria submetido a um "estágio probatório". Probatório para quem? Para o petismo partidário, é claro.
Questões desta natureza serão mais decisivas e complicadas para o virtual substituto de Lula do que o debate direto com seus adversários. Haddad se defrontará com a intolerância de grupos partidários tanto quanto com a desconfiança de setores sociais, sobretudo da classe média urbana, em relação à autonomia que teria diante do PT e da autoridade que terá sobre um eventual governo.
Mais que um problema delicado, trata-se de uma equação difícil: qualquer gesto de autonomia compreenderá em abalos na campanha; qualquer sinal de falta de autoridade implicará em desgastes na mídia, na opinião pública e diante de setores econômicos que, queiram ou não parcelas do petismo, têm importância se não na eleição, certamente no futuro governo. Eis o enigma.
Não resolvido, este tipo de dilema compreenderá em maiores obstáculos para forjar, no acaso de uma vitória, o necessário esforço de pacificação política e reencontro do país consigo mesmo. Esgota-se, assim, o tempo das firulas, das respostas vagas. E mesmo a ambiguidade – uma arte de poucos mestres – encontrará limites. A eleição avança cobrando definições. Ao final, a história interpretará apenas o que foi, não o que poderia ter sido.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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