Bolsonaro: som e fúria
Política é mesmo circunstância; no final das contas, atores contam pouco. Jair Bolsonaro, por exemplo, é um político de poucas virtudes pessoais e intelectuais; é um homem gerado no senso comum de seu tempo e espaço, no seio da direita mais conservadora e reacionária. Como se viu no programa Roda Viva, um candidato que de tudo sabe quase nada. Não é grande orador, não possui magnetismo pessoal e nem se preparou. É fruto do desleixo causado pelo processo de deterioração geral da política brasileira, reverbera as circunstâncias e o mal-estar da história.
Talvez por isso, seja um sucesso nesses dias — os mais conturbados do Brasil e inegavelmente bem desajustados em âmbito mundial. É sintomático e também irônico que goste de se comparar a Donald Trump. Possuem o mesmo princípio ativo: os sinais de retrocesso e o resultado de uma dinâmica caótica que se estabeleceu nos últimos anos; símbolos de uma "era do imprevisto", como assinalou meu colega Sérgio Abranches. Proliferam onde o medo do futuro insondável resulta em nostálgica busca de um passado edulcorado que não mais existe; que na verdade nunca existiu. Utopias regressivas.
No genérico nacional, além do aguçamento de uma série de vícios que se acumulam ao longo da história, foram as disputas sem regras e freios — sem responsabilidade também — havidas entre os grandes partidos, PT e PSDB sobretudo, que deram ânimo ao seu renascimento. Foi o esgotamento do sistema político fisiológico, sua depreciação e a decadência de seus quadros que retiraram o ex capitão do lugar que, talvez, lhe restasse na história — uma nota de rodapé, quando muito —, tivesse se mantido minimamente civilizado o ambiente político e social.
Eleitores de Bolsonaro — muito eventualmente, leitores deste BLOG —, que suportaram e ultrapassaram o parágrafo acima, decerto já soltam fagulhas e impropérios na ponta dos dedos para, mais tarde, preencher seções de comentários na Internet. Se a Fernando Henrique Cardoso chegam ao ponto de chamar "comunista", o que não dirão de um mero analista sem brilho, de muito menos charme e serviços prestados ao país? Embora não devessem perder tempo com o que não alcançam, respeito o direito de não gostarem.
Mas, o fato relevante, no entanto, é que também são resultados da história. Nas últimas duas décadas, resistiram ao vazio de referências políticas mais sólidas em seu campo — no passado, foram Integralistas, UDN, Arena, PDS, malufistas, mas recuaram diante da brisa que arejou por aqui durante o curto período.
Assimilaram Fernando Henrique pela estabilidade da moeda e, depois, foram abraçados pelo PSDB como uma frente antipetista. Engoliram o ciclo lulista como quem nada tem ou pode fazer diante de um desafeto convidado para mesma festa de conhecidos.
Todavia, as promessas da democracia não os alcançou — nem a eles, nem a muitos — até mesmo porque elas, essas promessas de transparência, igualdade e republicanismo, não se cumpriram. Duro admitir que, embora tenha se ampliado como discurso e método de escolha, a democracia estancou como espírito e prática. Como alertou Sérgio Buarque, a democracia por aqui sempre foi um lamentável mal-entendido.
Diante do avanço da tecnologia, da economia e das alterações da sociedade, a política ficou para trás, apequenando-se em interesses restritos de oligarquias e corporações cínicas e ultrapassadas. Foi a brecha para denunciarem, com certa razão, som e fúria, os desequilíbrios e as incongruências do sistema. E aquilo deu nisso — e em mais ainda pode dar.
A direita do passado, conservadora e reativa, perdeu seu lustro intelectual — Alceu de Amoroso Lima, Carlos Lacerda, Marco Maciel. Verdade que isso se deu com todas correntes tradicionais de pensamento: também a esquerda e a socialdemocracia perderam seu charme; o iluminismo entrou numa zona de vácuo em que se desespera a busca de saída, isolado num labirinto. De modo que o bolsonarismo — espécie de bonapartismo rebaixado — se elevou nessa época de estiagem de lideranças e falta de ar.
É um direito seu, com efeito. E o certo é que volta e meia, a história redunda em condições assim. Resultado da ação dos homens e mulheres que fazem a história sem saber a história que fazem, a História ri em deboche daquilo que fizeram dela. Há séculos, o espírito humano se apercebeu do absurdo e da infeliz constância de momentos assim. Essa percepção se encontra na impressionante sensibilidade e a atualidade de Macbeth, peça escrita por volta de 1607:
"Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos. E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado".
Citar William Shakespeare num momento como este pode ser um desvario e um luxo, por perfunctório, dependendo a quem se dirige. Mas é tão necessário quanto respirar e reafirmar a existência da humanidade. O momento passa e, embora se repita de tempos e tempos, a espiral da história, após pregar sustos desse tipo, volta a avançar. Tragédias são geradas, se processam, deixam marcas; não obstante, o destino do mundo é o sempre fluir. "Nada é, tudo flui", eis Sérgio Abranches, mais uma vez. O sol ainda nascerá, como ensinou Cartola.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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