PT: espírito de oposição
Há muito, a aura purista do PT esvaneceu. O pragmatismo se impôs e reduziu a pó as pretensões de um partido virtuoso, capaz de dar lição de ética aos demais. Melhor que seja assim. O pior da política é a mistificação; a coragem de mostrar "a dor e a delícia de ser o que é" é, ao seu modo, uma virtude. Ademais, partidos políticos não são feitos para ser elevados à condição de anjos, nem para representar a todos numa sociedade complexa. Feitos de interesses, é normal que façam escolhas e definam as bases de seu jogo.
O certo é que com o tempo o petismo adquiriu vícios e, na prática mais do que no discurso, se confundiu com a maioria dos partidos. Assim como qualquer legenda, o PT busca o poder. E isso não é ilegítimo, o problema é não deixar claro — ou não saber — exatamente para quê. Ainda assim, a agremiação continua a revelar particularidades que a distinguem.
Pois bem, nesta quadra de tempo em que as forças políticas se mobilizam para ganhar as ruas e as urnas da eleição em todo o país, o PT tenta colocar em pé sua estratégia. Quem conhece bem o partido e tem acompanhado sua dinâmica interna nesses últimos tempos comenta com ironia que é um exagero supor que haja estratégia naquilo que o PT tem feito a esmo. Para que estratégia houvesse, seria necessário unidade.
Pelo menos, autoridade que se imponha. Após a morte de Luiz Gushiken, a prisão de José Dirceu e de Lula, o PT já não teria tantos estrategistas assim, que merecessem o reconhecimento.
Pode ser. Mas, mesmo sem saber, sem unidade e sem clareza, o fato é que há uma alma petista. E a alma do partido vai se delineando por si própria e estabelecendo a racionalidade de sua ação. A alma e o espírito do PT estabelecem, sem saber, a estratégia do partido.
Mais ou menos como o mercado: não há comitê central, hierarquia, ordem, unidade. Há visão de mundo donde deriva uma forma de ser e estar no mundo atrelado interesses e vícios que carregam, que demonstram, "um modo de pensar" que é de quase todos, sem ser de ninguém. Mais que tudo, trata-se de uma dinâmica social que se dá nos ciclos de amizade, nas corporações, nos corredores das sedes e dos aparelhos.
O PT é desse modo. Mesmo que não saiba, possui uma racionalidade implícita que se revela atávica. Uma índole que se sobrepõe a ele mesmo e se estabelece como prática política. Escola de Samba de uns poucos ensaios que, durante o desfile, faz crer que foi tudo muito bem pensado, cronometrado. Só que não. Na maioria das vezes, é mesmo a vontade e a disposição que sobrepujam o planejamento.
Pois é nesse contexto que o PT se move também nesta eleição. Claro que a prisão de Lula é um drama para seus companheiros e para sua base social. Não se pode esquecer que mesmo detido e provavelmente impedido de concorrer, as pesquisas têm mostrado o ex-presidente com algo em torno de um terço das intenções de votos. Não é pouca coisa, numa época de desintegração.
Mas, Lula à parte, íntima e individualmente cada membro do PT pensa e projeta o futuro. E na mágica da inteiração e da sinergia dos grupos sociais, continua lá, incólume, a pretensão hegemonista do partido. A força da vontade de manter-se de posse da banca, dando cartas para o que ainda hoje se chama, de modo talvez impreciso, de esquerda vá ao PT como a Cristo foram as criancinhas.
Nesse sentido, seria muito difícil para esse partido apoiar qualquer candidato que se distancie de seu corpo, que não tenha aprendido a ler pela sua cartilha, que não reze exatamente o seu credo; qualquer um que não encarne o "petismo verdadeiro" ainda que isto tenha se perdido ou reste apenas como a lembrança de um quadro na parede.
A unidade das esquerdas, na alma do partido, somente é entendida como unidade se à cabeça da chapa e à testa do processo estiver o PT ou um dos seus empunhando a bandeira e realizando a liturgia do partido. Ciro Gomes e Marina Silva, exatamente por não serem assim, sequer são considerados, na visão petista, como "de esquerda".
Já Manuela d'Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos, embora reconhecidos como companheiros distantes, seriam jovens, inexpressivos e incapazes de unir o campo e representar o PT. Nada serve se não for do PT. Não há verdade se não vier do PT.
Não haveria problema, é claro, se todos esses personagens, ao invés de buscar independência e autonomia, apoiassem o PT, subservientes figurantes em seu filme. Desde que não sejam protagonistas, aceita-se até o PMDB e Michel Teme. O protagonismo, numa visão dogmática do esquerdismo tradicional, só pode ser do partido ou de quem o encarna. Não há bem, nem inteligência, fora dele.
Mesmo internamente essa dinâmica se reproduz, tendendo ao gueto. No pós Lula é muito difícil encontrar alguém que ultrapasse as diferenças e os conflitos internos, que paire acima das divergências e das tendências que formam o mosaico do partido. Sem Lula, aquele que flutua acima das águas turbulentas do facciosismo, dos agrupamentos e das disputas nos corredores dos aparelhos, será muito difícil encontrar quem dê liga à legenda.
No limite, se for para ter candidato próprio é melhor que seja para não ganhar. Uma vitória obrigaria o partido a se definir, quando não há mais o escudo estrelar ou o martelo de Lula, seu Thor mítico. Não se passará o bastão de Lula à frente para quem não maneje tão bem os símbolos e as ambuiguidades, as idiossincrasias com que o ex-presidente aprendeu a lidar ao longo dos anos.
Talvez, secretamente, no fundo do coração, a dinâmica petista, inconscientemente, prefira a solidão e o conforto da oposição a um governo compartilhado, um governo que não possa chamar inteiramente de seu — mesmo que jamais tenha tido um governo verdadeiramente seu. É a oposição que unifica o PT. Uma oposição sem muita clareza, mas que exatamente pela inexatidão consegue juntar cacos tão diversos, tão dispersos e tão displicentes. Uma oposição que nunca morre; oposição de e por espírito.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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