A greve e seu rescaldo, no país das aflições
No rescaldo da greve dos caminhoneiros, o rastro de muitas perdas para muitos e poucos ganhos para poucos. Perdeu a população que sofreu o fantasma do desabastecimento. Perderam os acionistas minoritários da Petrobrás — logo eles, o centro do cuidado e atenção da companhia. Perderam os caminhoneiros — os avulsos, pelo menos — ainda insatisfeitos com o preço dos fretes e seus custos. E, se é possível perder o que não se tem, perdeu o governo Temer, ainda um pouco mais, em respeito e credibilidade.
Greves de transportes são temidas no mundo todo, quando prolongadas tornam-se dramáticas e aflitivas, pois tangenciam o risco do desabastecimento. E isto pode despertar ondas de revoltas e saques, violência e anomia social. É um pesadelo. Por isso, não se pode considerar os caminheiros apenas como uma corporação a mais, uma corporação qualquer.
Salvaram o país a serenidade e a clareza do povo que, mantendo-se calmo, não agravou a situação. Todavia, os prejuízos foram enormes. Muitos, de impossível quantificação. Como, por exemplo, contabilizar o drama de uma ambulância parada por falta de combustível ou a ausência de viaturas da polícia, nas ruas? Outros são mais explícitos.
A população, ao final, é quem pagará a conta, diretamente — com o aumento do preço dos combustíveis —, ou de modo indireto, com impostos desviados de outros fins para subsidiar o óleo diesel. Mas, perdeu também a Petrobrás, sobretudo, após o pedido de demissão de seu presidente, Pedro Parente. O executivo não foi e nem será substituído por alguém de igual estatura. A desconfiança do mercado financeiro em relação a novas interferências políticas afetará as ações da companhia, que tentava resgatar a credibilidade.
Já os caminhoneiros, que provaram a força que possuem, permanecem em condições precárias. Serão ainda as grandes transportadoras que darão as cartas no disputado mercado de fretes. E, além disso, a redução do preço do diesel pode não se concretizar nas bombas dos postos de gasolina; e nem isto alivia o sufoco de custos e riscos inerentes à atividade.
Perdem também o Estado, o governo e o sistema político. O Estado se mostrou desprovido de mecanismo de antecipação de crises: Ministério dos Transportes, Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Ministério de Minas e Energia, Agência Nacional do Petróleo (ANP) e, se não bastassem, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), onde se encontra a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) falharam em não perceber, comunicar e acautelar o governo dos riscos do movimento. A sensação de vazio e ineficiência institucional é inevitável.
Já em relação ao governo, embora seja difícil imaginar Michel Temer ainda mais impopular do que já estava, o fundo do poço às vezes é falso: o governo ficou ainda um tanto mais desmoralizado e isolado. Simbólica é a entrevista concedida pelo ex-ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, na qual negou ser candidato do governo, desprezando Michel Temer. E se Meirelles o refuga, quem o abraçará na eleição? Provavelmente, ninguém.
Em política, isolamento é algo que alimenta a si próprio. Na esteira de Meirelles, os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Eunício de Oliveira; junto deles, o afastamento da base governista que lavará ainda mais as mãos de qualquer responsabilidade em relação ao governo. Governos isolados tornam-se vítimas de parasitas e corporações do tipo. Virá mais desgaste por aí. O processo pode entrar em metástase.
Do ponto de vista eleitoral, quase todos os candidatos andaram sob o fio da navalha. Se não puderam apoiar abertamente a radicalização do movimento, tampouco tiveram liberdade para contrariar um processo que, pelo menos no primeiro momento, contava com a simpatia do eleitor de mau humor e revoltado contra o governo e o sistema político.
Ainda assim, de todas as opções do cardápio eleitoral, a que talvez tenha somado mais pontos foi a de Jair Bolsonaro. O ex Capitão viu seu pelotão de radicais aumentar nas manifestações de ódio e oposição ao sistema político, colocando-se com um outsider de ocasião. Bolsonaro viu suas bandeiras tremularem em faixas que se multiplicaram por vários quadrantes do país, apelando por gestos de força e intolerância contra o regime democrático.
Enquanto seus adversários seguem perdidos e fragmentados, sem encontrar nomes que os unifiquem, o deputado aglutina em torno de si o eleitor conservador e reacionário. Está na frente e talvez tenha se consolidado. Ao mesmo tempo, no Centro, a heterogeneidade de índoles e propósitos, somada à timidez e as dificuldades Geraldo Alckmin, atua como elemento de dispersão do campo moderado. À esquerda, a indefinição do PT promove um vácuo, que Ciro Gomes e Marina Silva, ainda sem muito sucesso, tentam ocupar.
A greve fez destroços e varreu ilusões. Quebrou a tênue segurança em que agentes de mercado imaginavam viver; expôs as fraturas do sistema político, revelou a fragilidade do Estado e a inviabilidade do governo Temer. Paradoxalmente, fortaleceu discursos de força e ordem que, em si, são diametralmente opostos à liberdade e à práticas trazidas pela própria ideia de uma greve. O Brasil é esse país dos paradoxos e das aflições, onde Alice perde e ninguém se encontra.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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