A banalização do mal
Diz-se que filho feio não tem pai. Foi mais ou menos isto o que se deu em torno tragédia que envolveu o edifício Wilton Paes de Almeida, que desabou durante a madrugada do dia 1o. de maio, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo. Prefeito, governador e presidente da República foram ao local "prestar solidariedade", mas, evidentemente, cada um eximiu sua administração da responsabilidade; ninguém assumiu a paternidade.
A tragédia acabou politizada. O esforço maior foi apontar o dedo para os adversários e encontrar culpados do que compreender a dinâmica social que leva milhares de pessoas a viverem em locais como aquele. Culpou-se administrações atuais e anteriores, movimentos sociais sem-teto e urbanistas. Sem provas ou maiores elementos, houve ex autoridade que afirmou que o local servia de abrigo ao PCC — mas não disse o que fez a respeito.
Como se vê, não faltou quem desse bom dia a cavalos; houve até quem culpasse os próprios pobres por não terem moradia (sic). Ora, ora… O mundo é mais amplo que o mundinho de cada um; desconhecemos essa amplidão. Mas, o fato é que, na política, somente notícias boas encontram padrinho. Não faltam oportunistas para assumir a paternidade de uma obra bacana, de um bom plano, da distribuição de recursos. Já no momento ruim ninguém se apresenta. É normal.
Mas, o que não se discute — ou se prefere esquecer — é que o Estado, no Brasil, entrou em colapso. Seja porque não consegue estimular a economia, criar emprego e distribuir riqueza. Seja porque é incapaz de abrigar o povo pobre, sem-teto, miseráveis em situação de rua. Seja porque não consegue evitar ocupações em prédios vazios ou, diante do déficit de moradias inibir a especulação com imóveis ociosos.
Não se implementa políticas públicas inovadoras que estimulem a ocupação legal desses imóveis, que sejam capazes de incluir a população pobre. Por melhor elaborados e mais bem-intencionados que sejam, em virtude da falta de recursos e ou de interesse, planos diretores acabam relegados à letra morta da lei.
Simplesmente, o Estado não existe no Brasil. Não é porque seja pequeno e insuficiente, ou porque seja mastodôntico e perdulário. Na realidade cheia de paradoxos que é o país, o Estado consegue ser ao mesmo tempo isso tudo: pequeno e insuficiente para o que é necessário e inescapável; mastodôntico e perdulário na má alocação de recursos, na sua apropriação por grupos corporativos, superprotegidos.
Culpa de quem? Provavelmente, culpa de todos. Inclusive, da sociedade que se omite.
O Brasil é um país acostumado a conviver com a miséria, com pessoas dormindo sob marquises, com crianças nos faróis; com seres humanos vivendo e comendo do lixo que recolhem. É também habituado à criminalidade e à violência e nada mais parece escandalizar, tudo se fez banal. Sem açúcar, sem sal, sem indignação. Apenas normal. Banaliza-se o mal.
Pois parece normal que seres humanos, famílias inteiras, tenham que ocupar pardieiros sem luz, sem água, sem sol, sem segurança, sem perspectivas e sem ar. Assim, como parece natural que surjam pessoas que se aproveitam disso. Parece normal que a prefeitura diga que o problema é federal; que o governo, em Brasília, esteja distante, que o presidente da República seja vaiado. Que governantes e ex governantes, depois de décadas de poder, assistam a tudo com ar blasé. É um Estado blasé.
Nas redes sociais, no conforto de seus sofás, na modorra do feriado, os tais internautas se manifestaram informando que estão bem (sic). Marcaram-se no Facebook como "seguros", distantes de um lugar por onde, todos sabem, jamais passariam. Seria cinismo, desaviso ou melancolia por não estrem em Nova York, lugar de atentados terroristas? O terror, no Brasil, se manifesta a seu próprio modo. E, no final das contas, ninguém está seguro.
Outros tantos indivíduos, como sempre, preferiram, mais uma vez, demonizar inimigos: todos escrevem e ninguém lê; todos falam e ninguém ouve. Admirável mundo novo. Surgiram milhares — talvez milhões — de especialistas de ocasião (curiosos de Internet) prontos a atirar pedra, capazes de discorrer sobre a complexa questão urbana, o drama da falta de moradia, das drogas, da segurança, da especulação imobiliária; do direito de propriedade, da banditização dos movimentos sociais.
Vem à minha cabeça Max Weber, num trecho de sua "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" — não, é preciso dizer, não se trata de um "comunista". Mas, diz ele que "…neste último estágio de desenvolvimento cultural, seus integrantes poderão ser chamados de 'especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado'". Sem espírito e sem coração, esquecemos que, mesmo feio, todo o filho sempre terá um pai. E, no caso, somos nós.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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