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Blog do Carlos Melo

A entrevista de José Dirceu

Carlos Melo

25/04/2018 11h19

Imagem: Rodolfo Buhrer/ Reuters

Goste-se ou não do personagem e do que representa, não se pode negar a José Dirceu os elementos clássicos do "quadro" político – na nomenclatura de esquerda. Ele compreende conjunturas e momentos históricos, é frio e analítico; não desqualifica valores, objetivos e estratégias do adversário, busca assimilar seu raciocínio. Formula estratégia e estabelece passos táticos; orienta a base e conduz processos. Mesmo vaidoso, é disciplinado para se submeter à liderança simbólica e popular do partido. É um tipo em extinção no Brasil.

Bem, você, leitor que não quer reflexão, nega-se a compreender o ator político — o que não implica em concordar — e prefere simplesmente amaldiçoar o adversário, pare de ler este artigo por aqui; não perca seu tempo, você não ficará feliz. Se, por outro lado, você, leitor acrítico das religiões e das ideologias, que ama cultuar ícones e engolir o prato feito, sem esboçar reação que não seja a fúria fundamentalista à crítica, igualmente, pare. Não se irritem. Vão ao quintal, brincar de militante.

Para você, raro leitor, que decidiu continuar, quem sabe, na saudável busca de mais dúvidas do que verdade, no afã de algum esclarecimento, vamos em frente. Não sei se sou capaz, mas prometo que me esforçarei.

Dirceu concedeu uma entrevista primorosa e histórica à jornalista Mônica Bergamo, da Folha, na semana que passou (leia aqui). Feito a partir de uma frase sua, o título é longo — para um título — mas, se justifica porque sintetiza diversos elementos importantes e não se ajusta a um enquadramento simples. Espelha a condição e do papel do ex-ministro: "Eu não posso brigar com a cadeia, nem me render; vou ler, estudar e fazer política, diz Dirceu".

A primeira parte traz um relato humano da prisão. É duro e ao mesmo tempo triste. O cárcere é um irremediável castigo. E mesmo que não esteja nas condições desumanas em que se encontra a maioria dos presos comuns, ele degrada, humilha e impõe dor ao detento e à sua família. Mas, ao mesmo tempo, é realidade incontornável, não há como fugir. Necessário reagir com a dignidade possível, em respeito a si próprio e a quem focou aqui fora:"Tua família não pode te ver assim. Fique melhor. Se arruma. Levante o ânimo. Imagine como vai ficar a tua mãe". Melhor não "brigar com a cadeia".

Certa resignação é fundamental. No mais, é ocupar a cabeça, "a mente ociosa é o jardim do diabo". Movimento é um imperativo. Há as tarefas cotidianas: assear, manter tudo muito limpo, evitar doenças. Um esforço tão necessário quanto providencial. Trabalhar no que puder. Dirceu escolheu a biblioteca. Marcelo Odebrecht, "afável e educado" e mais reservado, fazia exercícios físicos. Eduardo Cunha frequenta o culto, lê a bíblia, que conhece profundamente; estuda processos contra ele. Ler, estudar, viver… e fazer política.

As diferenças, as divergências e as broncas pessoais e da política ficam lá fora. Depois de três anos, como não encarar e falar com Eduardo Cunha, por exemplo, o verdugo e herói do impeachment contra o PT. Mais, há aproximações inevitáveis, cumplicidade, vida que corre e transcorre na mão e contramão; todos precisam de todos. "Lá todo mundo na mesma m., entendeu? Há uma solidariedade. 'Vamos evitar que o velhinho pegue sarna, vamos limpar a cela dele, vamos levar ele para tomar banho"'. Estabelece-se a "comunidade", às vezes impossível, aqui fora. A cadeia aproxima, não afasta.

Quem é realmente da política — ou desse tipo de política —, conhece as regras do jogo e não abre o bico. "Cada um guarda mais o seu segredo ", há mesmo uma espécie de omertá. Ninguém entrega ninguém. Dirceu revela o que comentou com Eduardo Cunha e João Vaccari: "'Tô achando que o Palocci vai fazer delação' (…) Os dois ficaram indignados comigo. Principalmente, o Eduardo". Palocci fez a delação. Não traz a mesma tradição e nem possui a disciplina dos demais políticos guardados pela Lava Jato. É vinho de outra pipa.

Mas, nem só de cadeia se desenvolve o relato feito por Dirceu. Falando sobre Lula, embora não lhe poupe reverências, coloca a questão no campo da maturidade que parece faltar à emocional militância e à patética direção do PT: "o pior para ele já aconteceu: a indignidade de ser condenado e preso injustamente. Depois disso, tem que se adaptar às condições e transformar elas em uma arma para você. Esse é o pensamento". A vida é dura. Mas, o que fazer? Cortar os pulsos não é solução.

E concluí, fazendo uma aposta: "[Lula] não está proibido de fazer política só porque está preso (…) Da prisão você consulta quem quiser. Lula vai transferir de 14% a 18% de votos para o candidato que ele apoiar". O percentual de transferência de votos é afirmação controversa, uma aposta evidentemente. Mas é inequívoco que nacadeia e dacadeia, também se faz política. Dirceu sabe que para a história nem tudo está irremediavelmente perdido; sua fila anda.

No que tange à eleição e à insistência com a candidatura de Lula, o raciocínio do ex-ministro não poderia ser mais revelador: "…meu candidato é o Lula. Nós temos que lutar pela liberdade dele, mantê-lo como candidato e registrá-lo em agosto. Se não fizermos isso, será um haraquiri politico. Nós dividiremos o PT em quatro ou cinco facções. Nós temos que manter o partido unido. Daqui a 60 dias, o Lula vai tomar a decisão do que fazer, consultando a executiva, os deputados".

A questão, portanto, não é a pura insistência teimosa com Lula, mas o temor do "haraquiri político". O pesadelo para os dirigentes de dividir "o PT em quatro ou cinco facções". A determinação estratégica de "manter o partido unido", colocando-o acima dos interesses da esquerda em geral ou da preocupação com o futuro do país. É a lógica do aparelho. Mas, política é defesa de interesses específicos. O que a população mais pode almejar é que, eventualmente, esses interesses coincidam com os seus. Não é exclusividade do aparelho petista.

Ao ainda mais raro leitor que chegou a este ponto da leitura talvez fiquem indagações do tipo: "e a autocrítica, que não faz; e o reconhecimento dos erros do PT, que não surgem". Bem, Dirceu resvala na admissão de erros pessoais: "eu tenho apoio da quase absoluta maioria da militância do PT porque ela é generosa. E essa solidariedade não é porque todos concordam com minhas ideias nem pelo que fiz na minha vida profissional recente. É pelo que eu fiz pelo PT, pelo Brasil, pelo Lula. É pelo que eu represento".

A narrativa é heroica e grandiloquente — houvesse trilha sonora, subiriam os acordes da Marcha Triunfal, de Verdi —, mas a crítica é tímida, individual, limitada a erros pessoais, não mais que isto. Com efeito, toca fundo no coração do militante, de crenças e valores longe de sentimentos mais gerais ou universais. Mas, é para este público a que se dirige.

Não se espere autocrítica ao Partido, mesmo porque ela, se um dia vier a ser feita, não será pública. Ainda não surgiu o Nikita Kruschev petista, a denunciar e admitir os erros de seus Stálins. Na tradição política de Dirceu, o partido não erra. Nunca errou, jamais errará. O partido é infalível. (Só que não). A entrevista revela tudo isto e muito mais. É um documento históricos destes dias históricos.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.