Que tudo que é vapor possa se solidificar
A crise cria e destrói reputações de pessoas e instituições; tudo é fluido, nada é perene. O PSDB, por exemplo, viveu várias fases diante dela: foi ao céu com a "quase vitória" de Aécio Neves, em 2014 — na verdade, vitória política, mais que eleitoral —; estava pronto para assumir protagonismo, diante do governo Dilma, que se reelegia cansado. Depois, viu tudo escapar-lhe das mãos, com a vitória de Eduardo Cunha, na Câmara.
No impeachment, os tucanos fizeram o diabo para destruir o PT. Para isso, renegaram a si próprios: rasgaram medidas que eles mesmos propuseram no passado; assumiram a "pauta bomba" de Eduardo Cunha, com quem ombrearam marcha nos corredores e nos bastidores do Congresso. Depois, aderiram ao governo Temer, omitindo a natureza do presidente e do seu PMDB. Ao final, para salvar Aécio Neves, resolveram cortar o próprio pescoço. Do céu ao inferno, se vai a um vacilo.
O cientista político Sérgio Abranches escreveu um precioso artigo sobre a legenda. Com o título "Tudo o que é líquido transforma-se em geleia", despe o processo que levou o PSDB à vala de corpos vitimados pela crise, que faz do partido, hoje, uma espécie de PMDB do B.
Diz esse artigo que o partido "preferiu mergulhar na geleia geral. Adotou o padrão moral do PMDB. Contribuiu para enfraquecer o poder da suprema corte na luta contra a corrupção política. Rasgou qualquer sobra do programa da social democracia ao votar pelo privilégio, pela prerrogativa nobiliárquica de foro." Contribuiu para que se fechasse "o cerco da autoproteção corporativista" e, assim, "as instituições republicanas perderam e a geleia geral ocupou de forma ainda mais absoluta o topo da estrutura partidária brasileira".
Sérgio não poderá ser desqualificado como antitucano ou petista ressentido. Trata-se de um dos mais importantes analistas políticos do Brasil: publicou, neste ano, um extraordinário livro — "A Era do Imprevisto: a grande transição do século XXI" —; é fino, culto, profundo; possui a credibilidade de ser autor da primeira importante formulação a respeito da natureza do "presidencialismos de coalizão" brasileiro, já em 1988 — sistema sobre o qual sua avaliação acertou na mosca. Seu artigo não deveria ser ignorado.
É irônico — ou é triste — que o processo apontado por Abranches atropele caras referências para a história dos tucanos e do Brasil. Gente como Franco Montoro, Mário Covas, José Richa, Fernando Henrique e tantos outros que viveram e ainda vivem para combater o populismo e o arrivismo; o patrimonialismo que o PMDB representa — ao qual o PT também aderiu — e o corporativismo que destrói o sentido de República.
Também é irônico que a crise que parecia destruir o PT tenha acertado em cheio o PSDB. Um ano e tanto após o impeachment de Dilma, por ter fiel torcida — que canta "eu nunca vou te abandonar" —, o PT parece ter perdido, eleitoralmente, menos que os tucanos. Além disso, para o bem ou para o mal, o PT tem Lula; enquanto o PSDB, recusando-se ser algo por si próprio, imaginou consolidar personalidade sendo anti Lula e pró Temer. Entre o "anti" e o "pró", os tucanos acabaram por se anular.
O fato é que nos últimos tempos, têm se depauperado: perdem militantes e simpatizantes; intelectuais de ativo papel durante o governo FHC, abandonam o ninho para longe de seu destino. À esquerda ou à direita, seja para a indefinida modernidade da Rede ou para o liberalismo do Partido Novo (e até para a explosão de Jair Bolsonaro), os tucanos abriram os flancos e se descapitalizam eleitoral, política e socialmente.
Sua base social típica — urbana, de classe média e escolarizada —, já não enxerga na legenda capacidade de representa-la. O viés assumidamente moderado e socialdemocrata se perdeu na performance radical e exagerada do prefeito de São Paulo. A disposição republicana naufragou no fisiologismo do "é dando que se autoprotege" do governo Temer. Suas bancadas, na Câmara e no Senado, se dividiram na impossibilidade de acordo entre visões já inconciliáveis. O que os tucanos fizeram de si próprios, nem o PT conseguiu fazer de si mesmo.
Em seu texto, Abranches se refere ao partido "leva-tudo" — na terminologia da ciência política, partidos sem conotação ideológica, onde todos cabem e cujos objetivos são meramente eleitorais —; diz que o PSDB não nasceu assim, embora nunca tenha sido "solidamente pragmático". Mas, quiseram o destino, a dinâmica política e a conveniente indulgência de critérios que o partido se transformasse na geleia que Abranches tão habilmente colhe como termo, na geladeira de cadáveres da crise.
Pegue-se alguns exemplos: Bonifácio Andrada (PSDB-MG), relator na Comissão de Constituição e Justiça, que a bancada do PSDB quis afastar. Conservador, originário da antiga Arena, por questão lógica, há de se perguntar: o que faz um deputado com este perfil numa agremiação socialdemocrata?
Outro exemplo: assim como impediu que os tucanos morressem no governo Collor, é pouco provável que Mário Covas não desconfiasse da índole reformista do PMDB e se dispusesse posar de coadjuvante na foto fisiológica do governo de Michel Temer. Tudo isto delineia uma trilha para o abismo.
Mas, Política é também recomeçar: existem os que ainda sonham resgatar o já "velho" da fundação dos grandes partidos nacionais: políticos que erraram, se omitiram ou fracassaram na disputa interna, mas que nem por isso se perderam ou se confundem na massa pastosa em que as legendas se transformaram. Há gente assim em todo lugar — também no PSDB e no PT.
Esses, no entanto, precisam se encontrar: resgatar a Política, renegar o peemedebismo atávico e ancestral; romper a geleia. Jogá-la para o alto, apostando que, no contato com o ar mais puro, a geleia evapore. E, na magia da Política, o vapor se condense. E tudo o que é líquido possa novamente se solidificar. Grande texto de Sérgio Abranches!
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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