Segue o jogo
No dia em que vieram a público as gravações de Joesley Batista, revelou-se que a política brasileira chegara ao limite de um poço, cujo fundo é de areia movediça. Ansiosos se apressaram em crer que o governo Temer ruiria como um Castelo de Cartas, House of Cards do Brasil. Escrevi que, no entanto, era "cedo para dizer se a pinguela caíra ou não" (leia aqui); o sistema, afinal se protege, possui resiliência; há meios para prolongar sua agonia, pois não lhe falta lenha para alimentar a fornalha do fisiologismo.
Em virtude da força do Diário Oficial, o Executivo exerce descomunal ascendência sobre o Legislativo; o poder dispensa justificativas. Nem requer raciocínios complexos e sofisticados em sua defesa. Joga-se o jogo e ponto. Dilma Rousseff é que não soube se movimentar em campo, e, em razão da soma de erros que colecionou e da soberba que nunca conseguiu disfarçar, deu no que deu.
Nesse aspecto, Michel Temer ensina ao PT como se faz — pelo menos, nos parâmetros de determinados padrões éticos, os quais, esta análise, exime-se de comentar. Enfim, dependendo do critério, ponto para Temer. Mas, o resultado não foi de admirar e nem significa que o jogo tenha chegado ao fim.
Bem, na noite desta quarta-feira, o país tornou a assistir ao triste desfile de aberrações políticas. A fauna e a flora são exóticas até mesmo para o Brasil, comparado consigo mesmo num tempo não muito distante. A Câmara, que já teve Ulysses, Tancredo, Thales Ramalho, Carlos Lacerda, Jorge Amado, Marighela, Mário Covas, Florestan Fernandes é, agora no mais das vezes, o reino do baixo clero: deputados folclóricos e provincianos, mal articulando um voto ou uma desculpa.
Sem o glamour patético do impeachment — daqueles de quem chuta cachorro morto —, na maioria dos casos, parlamentares constrangidos diante das câmeras agarravam-se aos microfones do Plenário para desfilar argumentos frouxos, desconectados da sociedade — a política parlamentar resultou num fim em si mesmo. A favor ou contra Michel Temer, não importa, a vergonha alheia, transmitida ao vivo, foi mais uma vez a estrela da sessão.
Rei da moralidade, o PT, sem a imprescindível autocrítica, omitia o passado; rainha da virtude, a base governista tentava esconder o presente sob o tapete. Metamorfoses ambulantes, muitos dos mesmos parlamentares que votaram contra ou a favor de Dilma Rousseff se posicionavam a respeito de Michel Temer com sinais trocados. Poucos mantiveram coerência com os discursos de um ano atrás.
Igualmente desconcertante foi a forçada louvação da economia com que governistas buscavam justificar seus votos, como quem pede perdão. Estivesse a economia a minimamente resolvida, poder-se-ia — vá lá — admitir ser a verdade e "seu dom de iludir". Mas, no caso, nem verdade é. Pelo menos, não a verdade com a qual o país já possa se gabar.
Outra ironia que brotava era a que soava a cada vez em que os tucanos diziam "não" ao parecer de Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) e seus colegas peemedebistas (e congêneres), com escárnio, assinalavam a defesa de Michel Temer, dizendo votar "a favor do relatório do PSDB". Os partidos ruíram junto com a lógica: a dor e a delícia de ser e não ser, ao mesmo tempo, o que se é.
Mas, assim como, no Joesley Day, era cedo para dizer se a pinguela caíra ou não, também agora é precipitado afirmar que a agonia de Michel Temer chegará ao fim. Primeiro, porque sua vitória não foi avassaladora, está abaixo do quórum constitucional de reformas; ficou aquém das expectativas despertadas pelo próprio governo; no mais, não condiz com o esforço de reuniões e a magnitude de liberações de cargos e recursos, flores do recesso.
O governo se protegeu, está no jogo; e segue o jogo. Só isso — por enquanto. Muito dependerá da repercussão da votação, da disputa de "narrativas" nos próximos dias. Como se sabe, estão prometidos mais dois pedidos de autorização para investigar o presidente: um, por formação de quadrilha; outro, por lavagem de dinheiro. A oposição ao governo, não está exatamente no Congresso, mas no Ministério Público e na sociedade. Tudo dependerá de fatos novos, das flechas e bambus que Rodrigo Janot ainda pode ter guardado.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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