O teatro da política
Durante o recesso, o governo aproveitou para saciar a voracidade de sua base insatisfeita e pressionar indecisos que faziam cena; fez o que pode e o que sua índole lhe sanciona. Bate, agora, bem alto o bumbo de que a denúncia de Joesley Batista e o processo de Rodrigo Janot são páginas viradas. Inverter expectativas é estratégico: fazer crer numa vitória definitiva — quando o plenário votar o afastamento de Michel Temer — é um artifício para consegui-la de verdade. No mais, como num teatro burlesco, terá ajuda dos mais imprevistos personagens.
De um modo quase geral, os partidos já definiram o melhor roteiro para que a plateia — a base social de cada um — acredite que desempenham papéis claros e esperados. O mais provável é que nesta primeira votação haja muito barulho por quase nada. Nos bastidores, inúmeros jogos de cena já foram combinados.
O governismo ensaia que desafiará a oposição a reunir os 342 votos necessários para afastar o presidente, sabendo que, pelo menos numa primeira votação, não há força para isso. Os amigos de Michel Temer instigarão o PT como se a legenda, realmente, perseverasse pelo afastamento do presidente da República; como se seu adversário de verdade fosse o PT. Para os petistas, o jogo de sombras vale a pena, o antagonismo de fachada lhe interessa: fiel, seu público acreditará na disposição dos atores no palco.
Mas, os petistas, assim como todos os partidos, na verdade, se movimentam de acordo com interesses de médio e longo prazos, que ficam ocultos do roteiro, que são camuflados pelos discursos. Não revelam que as vontades não se articulam aos gestos, mas por disposições mais efetivas do que diálogos mais ou menos combinados.
É importante entender o jogo e os jogadores: alguns setores são base e, sendo base, é básico que se agarrem às vantagens competitivas do Diário Oficial: mamam na vaca e resistem largar as tetas da máquina federal. Ainda que cargos e recursos prometidos possam não mais chegar no timing da eleição, o cartório é sempre bom: importante para certo tipo de político expressar poder e influência, num jogo de aparências e seduzir desavisados e agradar apaniguados.
Na mesma base, há outros setores que agem diferente: estão tão comprometidos quanto o presidente e abandoná-lo seria fugir de si próprios. Feitos do mesmo barro, temem o mesmo risco; afastar a Temer seria cortar na carne — onde se come um boi, come-se a boiada. Nessa visão, o presidente seria apenas um, numa lista longa. Trata-se da turma do "estancar a sangria" de que nos fala Romero Jucá. Estão em quase todos os partidos, — naquilo que se proclama "reformista" e também no que se acredita "oposição".
O campo reformista sincero existe, mas é bem pequeno. Mesmo ele sabe que as reformas sem eleição são controversas; ademais, a assunção de Rodrigo Maia não seria nenhum desastre, neste aspecto. No mínimo, a dificuldade em reformar seria a mesma.
No campo da oposição, Temer tem inimigos, mas as estratégias também aí se diferem: a seu favor, há aqueles que, ao contrário de Jucá, preferem "deixar sangrar". Interessa-lhes deixa-lo se exaurir, no tempo certo do desgaste eleitoral. Um governo enxague, esvaído, que perdeu as forças pode reanimar mortos vivos da oposição. É negócio. O oportunismo é velho conhecido.
Há também os que agem por medo e miopia: fazem cálculos e receiam que o afastamento de Michel Temer, ampliando a incerteza, dê espaço a Rodrigo Maia, que viria a sucede-lo. Temem coloca-lo no páreo eleitoral, retirando a si mesmos. Parece ser o caso de parte dos tucanos paulistas. Não percebem, no entanto, que amarrados ao governo revelam-se atados ao velho, o que impedirá que representem a sinceridade do novo reformista que anunciam.
Enfim, a oposição a Michel Temer não está no Congresso — na Câmara ou no Senado; e nem é necessariamente uma oposição às inevitáveis reformas econômicas e fiscais das quais o governo se vale como biombo de sua natureza mais profunda. A oposição real, neste momento, reside em órgãos do Estado, nas corporações e em alguns veículos de comunicação; é difusa, não tem um partido específico e está no sentimento da sociedade, como demonstram as recentes pesquisas.
Pesquisas que apontam o desalento com o sistema partidário e com o governo; que demonstram uma aprovação ao presidente em níveis rastejantes. Especialistas dessas pesquisas asseveram que a população está com raiva de tudo o que reluz a política. Mas, também teme o que pode vir; não há esperança. O que a mantém em casa — e não a impele a ir às ruas — é a incerteza que a falta de alternativa gera.
No quadro dos interesses partidários acima, como se vê, é difícil encontrar quem possa vocalizar essa sociedade, para além da farsa teatral de cada um. Por sua vez, quando chamada ao papel de eleitor, a sociedade tende todo tipo de interpretação dessas peças maçantes que se tenta encenar nestes dias de final de julho. Todavia, o maior risco é que encontre um canastrão qualquer que a saiba interpretar. Bufões populistas, vingadores de opereta e falsos salvadores da pátria surgirão às mancheias. Esse tipo de teatro nunca acaba bem.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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