O debate sobre a crise fiscal deveria fugir de clichês
O caso do Rio de Janeiro é dramático. O estado faliu, tem dificuldades para arcar com responsabilidades básicas; atrasa salários, não consegue honrar compromissos. Além disto, tem sido varrido por escândalos de corrupção. Não é o único, porém. Há mais estados em situação similar ou a caminho: precisam de ajustes, de reestruturação e, para isto, dependem do governo federal. Não é possível retirar estados do mapa; há populações dentro de cada um deles; brasileiros. Trata-se de um problema do Brasil.
Ajustes fiscais, no entanto, sempre despertaram um caloroso e visceral debate. Em momentos como o presente, em que são necessários tanto na União quanto nos estados e nos municípios, a temperatura aumenta ainda mais um tanto. Com efeito, ajustes dessa natureza não são simpáticos: exigem cortes de despesas, aumento de receitas; afetam o status quo de diversos setores e tendem, sim, a atingir importantes políticas públicas, o que compromete o bem-estar de toda população.
Não é agradável implementá-los; não beneficiam a ninguém exatamente – embora surja aqui e ali quem possa aproveitar as oportunidades que nascem das crises. Por isso, ajustes morrem pagãos: não têm pai ou mãe, nem padrinhos. Não trazem popularidade e, eleitoralmente, compreendem considerável risco. O mais confortável para qualquer governante é não os fazer; empurrar com a barriga, deixar para os sucessores – que se lasquem!
Mas, às vezes não é mais possível virar as costas para o problema. A situação causa angústia e controvérsia; mas nem sempre exige coragem, pois é mais imposição das circunstâncias. No exemplo do Rio, Luiz Fernando Pezão não é um reformista – tampouco Michel Temer –, mas para que possa receber ajuda do governo federal, o estado terá que se desvencilhar de parte de seu patrimônio. A Companhia Estadual de Água e Esgoto (CEDAE) tende a ser privatizada; depende de lei específica no Congresso Nacional, regulando os acordos entre a União e os estados.
Naturalmente, isto implica em perda para o estado – que não terá em mãos um importante instrumento de política pública. E também, é claro, para os funcionários da Companhia, que terão o regime de seus empregos alterado de público para privado. Evidente que não foi com essa expectativa que entraram para a empresa, mas há aqui um típico problema de anéis e dedos; a quem defender: a parte ou o todo?
Já a preocupação de "quem" executará — ou executaria – os serviços de água e esgoto (ou quaisquer outros) não deveria ser o principal, contanto que sejam realizados com qualidade e custos a contento, justos e razoáveis. Não se pode negar que o estado, sem recursos, não possui capacidade de investimentos e grande parte da população já está desassistida, numa área fundamental até mesmo para saúde pública.
Um grupo privado aproveitará a oportunidade, evidentemente. E retirará lucros do empreendimento, como faz parte. Se não for para isto, ninguém arremataria uma estatal em leilão. Contudo, mesmo as estatais mistas, existentes, são assim: o que faz a Sabesp, de São Paulo, o que faz a Petrobrás? O mais importante será garantir boa regulação, contratos claros e a eficaz vigilância da Agência Reguladora – que hoje, de modo geral, são claudicantes.
A controvérsia, como disse, é, no entanto, gigantesca. Há quem discorde do raciocínio acima e acredite que nada disto faz sentido; que são argumentos de "liberalóides vendidos ao capital", imaginando que ajustes possam ser realizados sem custos, que recursos públicos não têm fundo; que tudo se resuma à simples e romântica "vontade política", sendo que bastaria aumentar impostos e taxar os ricos.
Impostos podem ser aumentados, é claro; e os ricos taxados, evidentemente. Justiça tributária é necessária e independe da preservação da CEDAE ou de qualquer outra estatal. Mas, há inúmeras pesquisas e trabalhos sérios que apontam que a quantidade e o valor dos impostos possuem limites – a sociedade está disposta a pagar ainda mais por serviços que não recebe?
Ademais, no Brasil – demonstram esses estudos –, não há tantos ricos assim, pelo menos não a ponto de que sua expropriação possa resolver os problemas do Estado e da sociedade – sequer faria cócegas e traria consequências econômicas, além de políticas. Sintomaticamente, o raciocínio pela "preservação do patrimônio estatal" é omisso em relação aos demais grupos de privilégios que existem por aí… O certo é que os clichês continuarão a não dar conta da realidade. É preciso fugir deles.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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