Topo

Histórico

Categorias

Blog do Carlos Melo

A imortalidade do poder de José Sarney

Carlos Melo

09/02/2017 16h05

Adriano Machado — 24. mai.16/ Reuters

Como poucos, José Sarney merece o epíteto "imortal", comumente empregado aos membros da Academia Brasileira de Letras. Literatura à parte, o ex-presidente parece mesmo politicamente indestrutível. Nem cabe aqui mencionar a fortuna que o levou pelos braços à presidência da República; menos ainda a mágica que produziu a ponto de se eleger, anos a fio, senador por um estado que não é o seu, o Amapá. Impressiona, o seu poder: a capacidade de renascer das cinzas, como se uma fênix morasse em sua alma.

Teve importante papel na transição do período autoritário para a democracia – após ter sido linha de frente do regime. Viveu a glória, com as tabelas e tablitas dos ineficazes congelamentos de preços, mas foi levado aos infernos após o fracasso do Plano Cruzado; viu os "fiscais do Sarney" desaparecerem das ruas e sua popularidade cair ao rés-do-chão; manietado por Ulysses Guimarães e pela Constituinte, conseguiu garantir 5 anos de mandato.

Em 1989, ao final do governo herdado de Tancredo, era o sparring favorito dos principais candidatos à sucessão; virou piada e nome de CPI (a "CPI do Sarney"). Seus dois mais agressivos adversários foram ao segundo turno, sem que qualquer aliado superasse, nas urnas, as marcas do risível. Recebeu de Fernando Collor de Mello a ira dos fanáticos.

Mas, sacodiu a poeira: não apenas manteve o poder na província, elegendo aliados ao governo do Maranhão, como também preparou a filha, Roseana, para um longo período de domínio no Palácio dos Leões. Comeu o mingau frio da vingança com a desgraça e o impeachment de Collor; regozijou-se com o néctar da "volta por cima".

De volta ao Senado, pelas mãos do povo do Amapá, fez-se referência, sacerdote dos conchavos e dos acertos de bastidores. Presidente daquela Casa por 4 legislaturas, nomeou ministros; definiu cargos e investimentos; contemplou amigos. Rompeu com aliado Fernando Henrique Cardoso quando, em março de 2002, a Polícia Federal do tucano flagrou a bagatela, para aqueles tempos, de R$ 1,3 milhão no escritório de seu genro – o que viabilizou José Serra e enterrou as pretensões presidenciais de sua filha.

Mais uma vez, se imaginou que a oligarquia estivesse em vias de desaparecimento. Foi resgatado, no entanto, por Lula. Retornou aos céus e se instalou como a pessoa mais influente da República. Para Lula, Sarney não era uma "pessoa comum"; não poderia ser medido com a mesma régua dos mortais. Estrela do PT, Aloízio Mercadante, recebeu enquadrada histórica do companheiro Lula, nome da preservação da excepcionalidade de José Sarney.

Também sob Dilma, exerceu grossa influência; fez indicações, protegeu interesses, definiu caminhos. Durante todo o período do PT, permaneceu incólume, sendo a "pessoa incomum" de quem Lula falou. Por fim, em 2014, votou em Aécio – "o neto de Tancredo"— como sinal de gratidão. Agarrou-se ao Senado até que a idade se impusesse e o poder, aparentemente, desvanecesse.

Desistiu de concorrer; contestada, sua filha viu a província mudar de mãos. Teve o nome arrolado aos escândalos da Lava Jato; submergiu. A maledicência dos mortais, chegaram a cogitar: "hora de morrer?". Entregaria seu corpo e espírito às mãos do Todo-poderoso, o juiz Sérgio Moro? Tola ilusão; claro que não.

Mais uma vez, Sarney ressurgiu das cinzas. Nem se pode dizer que tenha se rearticulado – ninguém retoma aquilo que nunca se rompeu. Também sob Michel Temer, o imortal dá as cartas – agora, em parceria com Renan Calheiros, seu herdeiro de verdade; como oligarquia e na pretensão à imortalidade. Em dupla, conseguiram emplacar Edison Lobão – outro citado pela Lava Jato — como presidente da poderosa Comissão de Constituição e Justiça do Senado, onde há de sabatinar — e aprovar — o futuro juiz do Supremo, Alexandre de Moraes.

Tudo muda, a terra gira. Mas, no Brasil, alguns fenômenos são perenes; sendo sempre o que sempre foram: o poder de verdade. Sempiternos, sem começo e sem fim. Postados no altar do tempo, de onde, ao que parece, jamais serão removidos. Sarney, esse Thor, filho de Odin, é um deles.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.