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Blog do Carlos Melo

A crise não se limita ao ES e tem potencial para se espalhar

Carlos Melo

08/02/2017 14h05

As cenas de violência, transmitidas a partir de Vitória-ES para o Brasil e o mundo, não se encerram na terrível sensação de barbárie que toma conta daquela população. Tampouco podem ser compreendidas como um fenômeno restrito ao estado do Espírito Santo. Elas dizem respeito a todos os estados, se relacionam com a União e com problemas que atingem todo o país; elas são fruto da crise econômica e do imperativo do ajuste fiscal.

Sim, é preciso dizer que o Estado Brasileiro entrou em colapso e já não consegue garantir sua atribuição mais básica – aquilo para o que foi "inventado": a segurança por meio da ordem nas ruas. É evidente que essa precariedade não é de hoje, o risco das ruas já faz parte do cotidiano. Mas o pânico que se manifesta nessas cenas, que revela "o homem como lobo do homem", é muito mais dramático que o medo de costume. Esse pânico excede até mesmo o despropositado comum.

Todavia, não se trata somente do colapso do Estado por falhas de gestão ou por crítica mais ou menos fáceis, mais ou menos simples, que se possa fazer à incompetência política quase geral no Brasil. O fato de a boiada ter estourado justamente onde estourou talvez queira dizer muito mais que isso; talvez haja um sentido que afasta a hipótese de coincidência ou aleatoriedade — ainda que, pelo menos por enquanto, não se possa falar em conspiração ou numa trama consciente de quem quer que seja.

De alguns anos para cá, o estado do Espírito Santo – na contramão da imensa maioria das unidades da federação – tem sido bem gerido. O atual governador, Paulo Hartung, desde o início da década passada, vem recuperando o estado que já foi o mais corrompido do país, tomado pelo crime, pela corrupção, pelo populismo e pelo corporativismo de grupos organizados. Um verdadeiro caos, cuja a responsabilidade comprometeu os principais partidos de então: PDT, PT, PSDB e PFL.

Em princípio dos anos 2000, o governo FHC cogitou intervir no estado; por questões legais, não pode fazê-lo e acabou por nomear uma importante força-tarefa que colocou policiais, políticos e criminosos indisfarçados na cadeia. Foi como que uma guerra; houve mortes, entre elas a de um advogado representante da OAB e um juiz federal. Entre outros, acabaram presos o então governador, José Inácio (PSDB) e o presidente da Assembleia Legislativa, José Carlos Gratz (PFL) .

A sociedade reagiu: Igreja Católica, OAB, Empresariado criaram fóruns, mobilizaram recursos; arquitetaram programas e lideranças para tirar o estado do atoleiro. Não foi esforço e nem mérito de uma única força, um grupo apenas ou de um homem só. Foi resultado de um benfazejo processo de ação e formação de liderança coletiva.

Com isso, Paulo Hartung (então no PSB, hoje no PMDB) foi eleito em 2002. Aliado ao PT da Assembleia, na ocasião presidida pelo deputado Cláudio Vereza – oriundo da parcela do partido que se salvara do colapso da gestão de Vitor Buaiz –, conseguiu reorganizar política, econômica e moralmente o estado. Foi como uma revolução que contou com a colaboração de muita gente, inclusive do governo Lula, também em início de mandato.

O fato é que o Espírito Santo do caos absoluto, em dois mandatos de Hartung, transformou-se num extraordinário caso de reversão de expectativas, com progresso nas políticas públicas, com sucesso administrativo, político e fiscal. A ideia de responsabilidade fiscal encontrou no Espírito Santo o seu abrigo e Hartung habita hoje o imaginário de muitos daqueles que já especulam em torno das eleições presidenciais de 2018.

Ora, o que se passa, então, com seu estado neste fevereiro de 2017? Difícil afirmar categoricamente. Em primeiro lugar, uma ressalva é necessária: admitir que os policiais do Espírito Santo – como de resto, os de todo país – ganham mal e arriscam-se muito; que as condições são precárias, que eventualmente tenha havido perdas salariais e que é justo que reivindiquem aumentos salariais.

Todavia, as contínuas quedas de arrecadação não permitem que o estado possa valoriza-los além de limites muito claros, os limites da responsabilidade fiscal tão ferozmente defendidos naquele estado por Hartung e sua equipe.

Joel Silva / Folhapress

Mesmo sem acompanhar de perto, é possível imaginar as cenas das quedas-de-braço entre economistas do governo e representantes da categoria; há no Espírito Santo um tenaz compromisso com a saúde das contas públicas e nisso não se admite recuo. O que não pode ser visto como um defeito; muito pelo contrário, mesmo admitindo que para tudo há limites.

Outros estados estão hoje definitivamente quebrados pelas concessões que fizeram nesse sentido. O Espírito Santo tenta se segurar. Mas, o irônico é que um recuo do Espírito Santo significaria uma espécie de sinal verdade para todos os estados — que nem de perto tiveram a postura dos capixabas e nem viveram as agruras que eles viveram há duas décadas – façam, doce e constrangidamente, recuos que fariam, em outros tempos, sem pestanejar.

A paralisação policial no Espírito Santo é, portanto, um ataque frontal às tentativas de ajuste e responsabilidade fiscal em sua principal fortaleza. O conflito, no entanto, não se resume ao seu espaço. Outros governos, por sentido de responsabilidade ou porque estão simplesmente quebrados, também não conseguirão corrigir salários de seu funcionalismo, inclusive de suas polícias. Mais, que isto, se quiserem ajustar suas contas, de verdade, serão obrigados a avançar na previdência de seus servidores, nos critérios para as aposentadorias.

Não é tarefa simples: os prejudicados reagem – uns com efeitos menores e imperceptíveis, outros tendo como resultado avalanches de transtornos, como é o caso das polícias. No meio do tiroteio – às vezes, literalmente – fica a sociedade, à qual, por sua vez e por razões justificadas, não admite pagar ainda mais impostos do que já paga. Estabelece-se um ciclo vicioso nesse teatro de horrores que tem potencial para se espalhar para outros estados — senão todos. Tomara que não — mas pode ser que sim.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.