O momento é mais delicado que o impeachment
O Brasil é um país com extraordinária capacidade de piorar o que estava mal. Na política, acontece aos saltos, num ritmo frenético. Desde o Joesley Day— o dia em que Joesley Batista jogou estrume nos ventiladores —, sabe-se que o governo pode emborcar. Ainda assim, resguarda-se a consciência de que navegar é preciso, na esperança de chegar ao próximo ano, com renovado ânimo e novo governo, após a eleição.
Mas, na última semana, o país resvalou a dúvida a respeito disto. Até mais que o impeachment de Dilma Rousseff, a greve de caminhoneiros – ou o lockout das empresas de transporte — foi o acontecimento mais delicado, em riscos e eventuais consequências, para a democracia do país. Os desacertos revelam uma torrente de erros históricos e também explicitam a incapacidade de diálogo e a dificuldade de encontrar saídas.
Sem explorar o potencial hidroviário e tendo abandonado as ferrovias, o país optou pelo modelo de transporte rodoviário, péssima escolha para quem depende de petróleo. Mais recentemente, o BNDES dos governos do PT deu enorme incentivo à ampliação da frota, sem se importar com os riscos do excesso. O mercado foi impactado por um acréscimo no número de caminhões. Ao mesmo tempo, o crescimento econômico secou e os fretes escassearam. O desastre foi inevitável.
Já no governo Temer, a nova mentalidade da Petrobrás (by PSDB) considerou estar acima dos problemas da economia real. Bastava-lhe o interesse de acionistas minoritários. O choque de credibilidade e a busca da confiança do mercado eram pedra-de-toque do próprio governo. Esqueceu-se, porém, o papel fundamental do acionista majoritário, o Estado: zelar pelo mínimo indispensável de equilíbrio social.
No acumulado de erros históricos, ninguém considerou que poderia dar M… Nenhuma força política está isenta de crítica.
Ainda assim, o que se poderia chamar de "governo" Temer comeu mosca ao não se antecipar aos problemas, no momento em que o mercado internacional e a política de preços de sua estatal colidiriam com uma massa incomum de trabalhadores. Não é conversa mole o slogan corporativista que diz que "sem o caminhoneiro, o Brasil para".
No sábado o Jornal Nacional, da TV Globo, mostrou que em ofício de outubro passado a Associação Brasileira de Caminhoneiros (Abcam) alertou a Casa Civil para as dificuldades do setor. Em caráter de urgência, reiterou recentemente o apelo ao presidente da República. Nem Eliseu Padilha, nem Michel Temer se tocaram. Mais vitais eram as articulações para o salvamento da própria pele. Quando se deram conta, o Brasil parou de fato.
O governo também parece ter errado no diagnóstico da crise. Demorou a atinar para a influência de empresas do setor sobre o movimento de trabalhadores. Nos últimos dias percebeu-se indícios de lockout, com transportadoras fornecendo apoio aos grevistas, um crime que exigem rápida punição, com multas e prisões.
Além disso, a turma de Michel Temer inverteu o mais rudimentar princípio de negociação: primeiro endurecer, para só depois ceder. Começando pelo fim, despertou-se o sentimento de que os motoristas poderiam retirar mais da contenda. Talvez pela consciência da fraqueza, talvez pela íntima percepção da pouca credibilidade que carrega, já nos primeiros dias o governo mostrou estar nas cordas.
Na sexta-feira, o governo dava sinais de pânico. E se errou ao ceder, resolveu exceder no endurecimento. Na incapacidade de articulação com governadores e na incerteza de contar com o suporte das polícias dos estados, mais uma vez, recorreu às Forças Armadas. Viciado vai ficando no uso de um recurso mais que excepcional.
Deu-se então o paradoxo: quem deveria sentir-se acuado pela força acabou por pedir a intervenção da caserna, não contra si, mas em desfavor do próprio governo e dos políticos em geral. A antipolítica ganhou os ares, apelos pelo uso da força foram explícitos. Boatos expandiram-se. Namorou-se o retrocesso institucional. E o mais assustador, a insensatez recebeu franco apoio.
Sentindo a faca no pescoço, na noite de domingo, Michel Temer foi a TV para capitular. Mais uma vez, cedeu amplamente. Ao fundo, ouviu-se um ressuscitado rumor de panelas… Agiu no limite de suas debilitadas forças para evitar mau maior: a crise de desabastecimento, a paralisia das cidades, o caos no país. O problema é ter exposto o nervo que será fustigado: recorrer aos militares foi bravata. Riscos e ameaças não cessam com armistícios desse tipo.
Como não poderia deixar de ser, no paralelo disparam os cálculos eleitorais: por ter agido com maior desenvoltura que a trôpega tropa de Temer, o governador de São Paulo ganhou luzes. Márcio França não mais será um desconhecido. Mesmo ao final esvaziado pelo ciúme de adversários, despertou a atenção que precisava. E de forma positiva.
Já a imperícia do governo federal o afunda ainda um pouco mais. Sobram respingos para os candidatos de algum modo identificados com Michel Temer. Por sua vez, a radicalização favorece nomes e discursos mais agressivos e voluntaristas — à esquerda e, sobretudo, à direita. Brilham os olhos dos postulantes a salvador da pátria.
No deserto de liderança política, questões estruturais são abandonadas diante da aflição das crises agudas. Cego fica o olhar para o futuro. O paliativo torna-se a norma e nada é mais brasileiro que a gambiarra. Não há mal que não possa ser piorado. Mais que do momento, o drama é do lugar: não há sociedade, há briga de torcidas; não há Congresso, há cartório; não há economia, há uma feira ruidosa. Não há governo, há um vazio. Se não é um país, será um abismo?
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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