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Blog do Carlos Melo

A falta de política estoura nas ruas

Carlos Melo

28/03/2018 07h24

Marca de perfuração em ônibus usado pela caravana de Lula no Sul. Foto: Bernardo Barbosa/UOL.

A humanidade inventou a política para que homens e mulheres não se matassem de verdade. A política inventou o Estado para que ele, e somente ele, o Estado, tivesse o monopólio da força física, da violência, o que impediria que homens e mulheres se matassem de verdade. Quando a violência assume a centralidade das relações é porque o Estado, a política e a humanidade falharam.

Os atos de violência em torno da caravana do PT não expressam apenas a contrariedade de parte da população com aquele partido e seu líder. Antes de tudo, indicam a degeneração do sistema político, incapaz de promover o diálogo e a mediação do contraditório, substituindo tapas, pedradas, ovos e tiros por algo mais sofisticado, como a comunicação e o debate de ideais.

Culpa de quem? De muita gente. Difícil começar a explicar. O PT, é claro, cometeu muitos erros. Foi em uma de suas campanhas eleitorais que deu largada à miséria dessa política, ao lançar mão de raciocínio rude e populista, expresso na formulação simplória "nós contra eles". Para quem planejava representar a sociedade, dividi-la foi pouco inteligente. Negação da política e do governo, cujo objetivo é unir.

Hegemonismo e arrogância expressam insegurança. Os adversários do PT adoraram. Dava-se a eles o monopólio da interlocução de tudo o que não fosse "nós" — ou "eles", sabe-se lá —, que não se identificasse com os valores do petismo, já uma variação dentro da própria esquerda. Para quem tanto reclama respeito à diversidade, mais que contradição, foi um erro fatal.

Em junho de 2013, multidões saíram às ruas sem saber exatamente porquê — não foram, de fato, os 20 centavos das passagens de ônibus; foi talvez a busca de identidades primárias: saber, afinal, quem eram os "nós" e definir quem seriam os "eles".

Aberta a Caixa de Pandora, só a esperança é que ficou contida. O mal-estar se espalhou por toda a campanha eleitoral de 2014, empobrecida pelo predomínio de figuras pouco sofisticadas como Dilma Rousseff e Aécio Neves; desorientada pela perplexidade paralisante de Marina Silva.

Nem sempre a eleição é remédio para os males; às vezes, os agrava. O mal-estar sobreviveu à disputa de 2014 e avançou pelo processo de impeachment de Dilma, alentado pelo oportunismo fisiológico cujo emblema maior repousa na figura do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, hoje guardado em Curitiba, repousando seu ressentimento e sua bílis.

Mas, não foi apenas ele, é claro. O impeachment, cimentado com a argamassa dos erros de Dilma, fundiu uma série de outros oportunismos. Como os do PMDB (MDB), que enxergava na derrocada petista um atalho para o poder que estancaria "a sangria" agora exposta pela Operação Lava Jato. Foi o que pontificou Romero Jucá, o intelectual orgânico que o presidencialismo de coalizão hiperfisiológica foi capaz de gerar.

Também não fica de fora o PSDB, que, ressentido com a derrota de 2014, andou de braços dados com Eduardo Cunha; serviu de esteio ao governo do PMDB e foi entusiasta da teoria do estancamento, ideia-força de Romero Jucá, Michel Temer e Aécio Neves: "estancar a sangria" foi como colocar um dique à sociedade. Não tardaria, as águas romperiam esse tipo de barreira.

Feitos como expressão do equilíbrio entre a cauda e o bico, os tucanos perdem o prumo e diluem-se na geleia geral do Centrão. Geraldo Alckmin, candidato sob encomenda para reconstruir o Centro e aplainar as asperezas da desinteligência, mete-se a inoportuno analista: "o PT colhe o que planta". Apenas o PT? Bombeiros não apagam fogo com gasolina, governador.

Tampouco é apenas tudo isto: o conflito, que não teve mediação da política, perdeu a salvaguarda da Justiça. Naturalmente, a política se judicializaria como efeito de sua incapacidade de contornar o conflito. Mas, foi, gradativamente, a Justiça que se politizou. Isto fez com que se fragmentasse numa miríade de visões de direito, justiça e, até, de interesses políticos, perdendo a unidade e a orientação de um Pleno, no Supremo Tribunal.

Incapaz de decidir, a Justiça não contorna interesses e já não arbitra conflitos. É claro que isto tudo estouraria como violência, nas ruas. A Humanidade requer Política, Estado e Justiça. O que fazer quando ela própria já não parece capaz preservar esses instrumentos que a preservam? Não, a solução não está no despotismo esclarecido. Até porque déspotas quase nunca são esclarecidos.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.