Escândalos se incorporam desumanamente ao cotidiano
Vivendo sua quadra histórica mais complicada, nessas duas semanas o país disfarça seus males e faz de conta que tudo está bem. São as águas paradas do recesso, o cansaço da opinião pública, a desatenção causada pelo frio; o remanso temporário das águas no mesmo lago onde mora o monstro. Presidente, Michel Temer toca o bumbo: "o país reencontrou o rumo; está nos trilhos". É do seu papel e sua alternativa: ao jogador de poucas cartas cabe o blefe; olhar para mão pobre e sorrir como se repleta estivesse de ases e reis.
Mas, o rumo é tortuoso e os trilhos danificados. O que mais preocupa é a segurança pública. Alguém já assinalou que, em alguns lugares, a bala perdida foi assimilada; faz parte do ruído urbano como o pio dos pardais. Banaliza-se a morte. Há alguns meses, numa dessas viagens que a profissão obriga, me perdi num desses subúrbios perigosos. Apavorado, o motorista que me levava suava em bicas; dizia-me que, ali, o risco era o ladrão e também a polícia. Frio, eu mantinha a calma dos ignorantes.
Tempos depois — de volta ao estado, consciente dos riscos —, comentei o caso com um taxista; como se lhe contasse uma aventura, falei dos caminhos porque havia me perdido. Com atenção, ele ouvia sem abalos; parecia-lhe óbvio que na cidade houvesse áreas desse tipo e que elas se expandissem. "Está cada vez pior". Nem o Waze é capaz de dominar a sociologia das cidades. Por fim, filosofou: "Às vezes, nada acontece". Não era ironia nem piada: tive sorte. A tragédia é, sim, o normal.
O estado em questão foi o Rio de Janeiro, mas o episódio cabe em qualquer rincão do país. Simbólico, o Rio é apenas, na federação, o doente em estágio mais avançado. De um modo geral, todos estão quebrados, sem dar conta do custeio das máquinas públicas — quanto mais investir para amenizar os efeitos da crise. À população resta se adaptar: trancar as portas, cercar as casas, evitar as ruas. Medo que se banaliza ou é neurose ou é covardia — a covardia nossa de cada dia.
O escândalo se incorpora desumanamente ao cotidiano como um poste sem vida. Evidente que, ao chegar à segurança pública, a crise já tomou várias outras áreas. Saúde, educação, promoção social; ética e moralidade pública. Tudo se resume a uma espécie de muro pichado, numa rua abandonada à qual todos incorporam ao caminho; o rumo de que fala o presidente Temer. Tem sido assim.
A maior preocupação de muitos analistas se volta para a saúde das contas públicas. Não deixa de fazer sentido, em tese. O raciocínio é conhecido: sanear as finanças do Estado, fornecendo confiança para investimentos privados, que trariam empregos e crescimento econômico; aumentos de arrecadação facilitariam investimentos em segurança, saúde e educação: circulo virtuoso, desenvolvimento social. Tudo muito simples. Em tese.
Nesse sentido, justificam-se os aumentos de impostos diante das condições fiscais, mas também pela manutenção de importantes políticas públicas. Seria mesmo inevitável.
Os impostos, no entanto, vieram após o aumento dos salários de parcelas do funcionalismo, o perdão ou refinanciamento de dívidas, liberações de emendas e cargos às mancheias para garantir o claudicante mandato do presidente. Reforma da previdência, com manutenção de aposentadorias especiais; modernização trabalhista com preservação do imposto sindical. Que sentido há nisto além do poder dos grupos de pressão?
O que fazer está nos livros-texto dos melhores cursos de economia. Como fazê-lo nenhum manual ensina. O longo prazo é uma esperança para depois de depois de amanhã; não raro, se lhe perde de vista. A vida concreta e o desespero da vida se dão no hoje e no agora: é preciso Políticas pra já. Depois, é sempre tarde. Na verdade, é cruel: jogar água fria na manhã gelada dos que dormem na rua demonstra a estupidez humana em seu grau mais elevado. Prêmio Barbárie. Nem às vezes isso pode dar certo.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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