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Análise do vazio e a hora da despedida

Carlos Melo

15/01/2019 14h41

PICASSO, Pablo. Guernica, 1937. Pintura a óleo. Museu Reina Sofia, Madri.


Curioso o momento do país: há um governo que não precisa de oposição, pois é capaz de se enrolar sozinho; e há uma oposição que adora se boicotar, não carecendo de adversários para isso. O governo é dividido em alas que não se ajustam e até se estranham, presas à dogmas que ao negar o passado reforçam novas velhas ideologias; a oposição, um deserto de iniciativas e lideranças, vive de símbolos que já não conversam com o presente como quem resolve estudar línguas mortas. É presa do esquerdismo que já o velho Lênin criticava.

A verdade é que há um imenso vazio clamando por ser preenchido, mas o que se oferece tem pouca ou nenhuma densidade. Seja no governo ou na oposição, o momento é de amadores. E até que aprendam seu mister levará tempo. Nada resta a não ser esperar que a própria história produza saídas para seus impasses. Nessa imensidão desértica, se debruçar sobre a alentado romance: entre tantos Queiroz, melhor seria ficar com o Eça.

Mas, esse deserto é nossa sina. O jeito é compreendê-lo, mapear suas dunas, vales e colinas.

O governo Bolsonaro não é um todo e a soma de suas partes não conformam um conjunto. O que se sabe é o que se percebeu desde a primeira hora: os três Postos Ipiranga delegados pelo presidente — a Economia, a Justiça e Segurança, a Defesa (a corporação militar) — têm dinâmica própria. À parte, o núcleo ideológico disperso entre o bolsonarismo radical, Itamaraty, Educação e Direitos Humanos. No front da política parlamentar, uma tropa de nanicos para dar conta dos leões do Congresso Pedindo espaço e relevância, o general Mourão esforçando-se na tabela com o Posto Ipiranga de Paulo Guedes.

Na semana que passou e ainda nesta, proliferam notícias a respeito do que o governo pretende fazer na Previdência, por exemplo. O mercado vibra com cartas de intenção sem se dar conta de que o noticiário expressa, antes, a luta política: a Economia vaza balões de ensaio com a pretensão de transformá-los em fatos. Busca-se constranger a ala política, as corporações agora aliadas ao governo, o próprio presidente da República. Um jogo de interesses dispersos que o cercam. Tudo ainda é tese e antítese esperando virar síntese.

A luta política do atual governo não se dará contra a oposição mas internamente; nas próprias entranhas e contradições.

Já na oposição não se sabe o que fazer com o ex-presidente Lula; não há unidade na formulação de um simples bloco, nem entendimento em relação ao jogo do parlamento — as disputas na Câmara e no Senado. No PT, os ecos e gritos de uma ópera-bufa: o entendimento vago, inconstante e incoerente sobre a democracia que diz defender. Tiros nos pés revelados nas contradições expostas por posições desconexas a respeito de Brasil e Venezuela, por exemplo.

Não há liderança simplesmente porque não há rumo. E não há rumo porque as lideranças não mais existem.

Este quadro não é novo, é apenas a desolação que fica explícita, passada a ilusão que a eleição resolveria os impasses. Ele se conformou ao longo do tempo e é um processo difícil de ser superado. Será assim por um bom tempo, mas um dia passa.

***

Nos últimos dois anos, busquei acompanhar cotidianamente o seu desenvolvimento; compreender o quadro histórico que se delineava, descrever seus detalhes sem repetir o que o pessoal do jornalismo político do UOL faz no noticiário, com mais recursos, fontes e qualidade do que eu, caso me arriscasse. E tudo começou quando do acidente aeronáutico que pôs fim à vida do ministro Teori Zavascki e aumentou a dramaticidade da política nacional. Foi meu primeiro artigo no BLOG (leia aqui).

Foi uma experiência que no começo se deu como um desafio: queria me testar, seria capaz de fazer análises assim tão amiúde? Seria possível manter a distância, a serenidade e a sanidade, evitando aderir a qualquer dos lados que se engalfinham no centro do teatro político brasileiro? Seria capaz de faze-lo exercitando os músculos do estilo, carpindo as frases e o texto? Sabia do risco, pois quem fala muito dá bom dia a cavalo.

Decidi que, antes de tudo, era preferível "apanhar dos dois lados" e manter a autonomia política, o sentido da honestidade intelectual e a liberdade de forma. Mais do que pontificar, estar certo ou errado, manter a lucidez foi o que mais persegui.

Para isso, foi necessário fugir do sensacionalismo das manchetes; escapar da crítica fácil ou da difícil preferência pessoal em relação a este ou àquele ator político. Isto não gera muitas amizades: o militante, não importa o lado, logo se manifesta, grita e desqualifica nos comentários, nos e-mails e mensagens que enviam para sua caixa postal pessoal, nas inúteis contendas pessoais.

Já a "turma do meio" pouco se manifesta. Ou pelo menos não o faz de público. Ainda assim, fico comovido quando lembro as inúmeras manifestações de incentivo que recebi e tenho recebido, não apenas pela "opinião" ou "análise", mas também pela "forma". Bem ou mal, isto está claro, constituí um público leitor, que não sei precisar o tamanho. Mas é o maior patrimônio intelectual e sentimental que levarei.

Foram mais de dois artigos por semana, ao longo deste dois anos. Um acúmulo de 220 textos, escritos no calor da hora com a perspectiva de, no entanto, tatear a história. Isto fez com que a Companhia das Letras me convidasse a participar de um projeto editorial que envolveu vários intelectuais brasileiros, numa reunião de 22 ensaios sobre a eleição de Jair Bolsonaro (aqui). Sem trocadilho, orgulho-me da companhia nesse livro.

Com vários amigos e alguns editores, analiso a possibilidade de transformar o material do BLOG em livro. Vamos ver. Preciso de tempo para pensar num projeto literário, mais que analítico, minha verdadeira pretensão. Tem me faltado tempo, oportunidade, engenho e arte.

O fato é que minha relação com o UOL chega ao fim. Foram dois anos exatos, período que havia estabelecido como sinal de sucesso e resiliência, caso chegasse a completá-lo. Completei. E espero ter dado poucos bons dias a cavalo. Quero agradecer ao UOL pela oportunidade que me deu, sem jamais cercear, pressionar ou sugerir qualquer tipo de opinião ou postura. Fui absolutamente livre.

Igualmente, agradeço ao editor Diogo Pinheiro pela constante atenção, companheirismo e disposição em ajudar. Ao mestre Josias de Souza que me incentivou no princípio e a quem admiro, sendo seu fiel leitor. E, em especial fica minha gratidão a Irineu Machado Antônio, gerente de notícias do UOL que, com seu sorriso largo e franco, me abriu as portas da amizade e do maior portal do Brasil. Valeu, gente.

E mais que tudo, agradeço ao raro leitor, prometendo voltar a buscá-lo, após o descanso a que me dou direito. Aqui, fiz amigos mais importantes do que os eventuais desafetos. Não quero deixa-los. Com muito menor incidência, estarei por perto do próprio UOL, além de outros veículos, mídias e canais. Como cachaça, esse troço entra na corrente sanguínea e vicia. Será difícil largar. Até!

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

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Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.

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