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A “desrejeição” a Temer e a pinguela de um tempo que se vai

Carlos Melo

28/12/2018 12h37

"Rosebud", o mundo perdido de Charles Foster Kane, na imortal criação de Orson Wells ("Citizen Kane". 1941)


Na última sexta-feira de um ano que perece por ter sido o último de um ciclo histórico, insisto ainda mais uma vez e abro os jornais. Lutar com as palavras, essa luta mais vã (Drummond) e recomeçar a cada manhã é a sina nesta lida de observar o mundo e ousar (tentar) traduzi-lo. A cidade anda devagar e com vagar se movimenta o pensamento na angústia de tocar uma réstia de luz e fechar o ano. O que recolher deste dia, na modorra que se estende nesse período entre o Natal e o Ano Novo?

As notícias não são boas: na Ilustrada, da Folha, a morte de Heloísa Maria Buarque de Holanda, Miúcha. Filha de Sérgio, irmã de Chico, ex-mulher de João, mãe de Bebel… Sendo tudo isso, foi também Miúcha, a cantora afinada, de sensibilidade aguçada, articuladora de amizades e parcerias, que acompanhava gente como Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Toquinho; a Turma do Funil… E coisas dessa sofisticação que, um dia, foi a música, a cultura e a esperança no Brasil.

No mesmo Caderno, Egberto Gismonti afirma que está colocando todo seu riquíssimo acervo — algo em torno de 900 músicas — à disposição do público, gratuitamente, na Internet. Toca-me o fato de ter decidido faze-lo após uma apresentação no interior da Áustria, quando como numa epifania se lhe revelou que as pessoas que ali foram ouvi-lo estavam lhe "dando o que têm de mais caro, o tempo de vida".

Não vivemos tempos para sofisticação ou generosidade; isto tudo parece ter-se perdido num país da delicadeza que foi abandonado ou ficou para atrás, na distância triste e irreparável do sumidouro de um espelho retrovisor. Trata-se de um Brasil que não mais existe ou que está em vias de deixar de existir. Sinto que escorre pelos dedos e estes dias de modorra nos deixam mais sensíveis.

O país vive um "nova hegemonia". E ela insiste em desqualificar o mundo que pretende superar. O faz por não compreender, por não alcançar, talvez, ou simplesmente por não compartilhar de seus valores, de sua estética, preferindo rimas pobres, harmonias simplistas, num estilo kitsch, meio-jeca, meio-country, meio-trump. E com isso a tudo demoniza num carimbo-clichê chamado de "comunista", "globalista" tudo o que pressentir a mais tênue brisa intelectual.

São estes os tempos, onde Miúchas e Gismontis parecem não caber. São os tais ciclos históricos. O momento parece indicar que um se fecha, outro se abre.

O primeiro tendo chegado à exaustão pelos exageros, pelos erros, pelas vertigens, desvios e descaminhos. Um mundo que não soube se renovar, sendo atropelado pelas revoluções da mobilidade, da super produção, da hiper tecnologia, pela explosão do consumo.   

O segundo que se inicia sobre os escombros do primeiro, propondo a destruição do velho, sem saber exatamente o que edificar, numa destruição não criativa, regressiva a um passado de poucas luzes, pré e até anti iluminista.

Ao mesmo tempo o mesmo jornal diz que a rejeição a Michel Temer recuou a 62%, após ter batido extraordinários 82%. Passado o período eleitoral, para muita gente Temer ou não era tão ruim assim ou era mesmo a tal da pinguela que o país deveria atravessar, com cuidado, para não se perder no abismo sob seus pés.

Mas, a pinguela ruiu. E não foi apenas a do governo Temer. O estrago parece bem mais profundo, desconectando não somente o ciclo de erros e velhacarias do PT, PSDB e PMDB como também de duas eras.

Uma que surge, quem sabe, lá na euforia dos idos ingênuos e ilusórios de1958, com o primeiro título Mundial de Futebol, Marta Rocha, a Bossa-Nova, o Cinema Novo e a inauguração Brasília. E outra, agora, a do kitsch bolsonariano.  

Então, a "desrejeição", essa reversão de um sentimento que era desamor e que hoje já é quase saudade, deve ser entendida como já a nostalgia de um tempo que se vai, sem, no entanto, nada deixar em seu lugar.

O jornal de hoje é apenas a consciência de que a pinguela se partiu, onde de algum modo ainda tentavam se agarrar o tempo e o mundo que também foram de Miúcha e de Egberto Gismonti. Feliz Ano Novo a todos.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

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Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.

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