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A polarização e suas circunstâncias

Carlos Melo

30/09/2018 12h17

"O Abraço de Amor do Universo, a Terra (México), Eu, Diego e o Senhor. Xólotl" . Frida Kahlo, 1949.

É claro que o assunto é a reta final deste primeiro turno. Ao que tudo indica, a disputa ficará mesmo entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Qualquer coisa fora disto será muito surpreendente. Algo como se Cristo chegasse à porta da cripta e ordenasse: "Lázaro, levanta-te e anda". Passaríamos, então, — ou passaremos — os próximos 40 anos para entender o que aconteceu na última semana da eleição. E isto só não é impossível porque, como se sabe, no Brasil as vacas tossem.

Mas, estando a parada entre Bolsonaro e Haddad, muitos elementos parecem se confirmar: o candidato do PSL é muito mais que um golpe de sorte, momentâneo, um Celso Russomano. Bolsonaro é um fenômeno eleitoral, mas também político. Gostem ou não, ele tem raízes na sociedade brasileira. Há elementos que não apenas aderem, mas que, na verdade, produzem o seu chamado "mito".

O "mito" se sustenta numa visão crítica radical e sectária, que reage a um sistema político que, convenhamos, colapsou. Uma democracia liberal em crise, mergulhada num ambiente de escândalos recorrentes e declínio de lideranças políticas. Não há apenas uma crise de paradigma senão a crise como paradigma.

No mais, trata-se de um segmento social multifacetado, num mosaico de razões que, de algum modo, convergiram para Bolsonaro como um feixe de descontentamentos, medos e oportunidades — ou oportunismos. O tal do "mito" não se explica em si, mas por um encadeamento de circunstâncias que o favoreceram e podem favorece-lo ainda mais.

Pois bem, há entre seus adeptos e devotos uma parcela que é mesmo conservadora nos costumes e reativa ao que não lhe parece normal no mundo moderno onde os costumes são sumariamente abandonados. Antes, é o mundo moderno que lhe parece anormal e que precisaria ser "corrigido" pela mão forte ou de deus ou de um representante seu, na terra. São pessoas avessas à diversidade, a qualquer fenômeno que escape de um padrão entendido como correto e seguro.

Não se compreende, por exemplo, que todo ser humano traga em si uma orientação sexual própria, particular e que possa se expressar por esse íntima natureza. Antes, acredita-se tudo se tratar de estímulos do mundo exterior: a suposta ação de minorias militantes, incentivos da mídia, cartilhas produzidas por governos, os tais "Kits Gays" que, nessa visão, desvirtuariam as crianças.

O mesmo serve para a emancipação e liberação femininas, entendidas como desagregadoras da família tradicional, retirando homens do confortável lugar de poder. Mulheres, então, deveriam "ganhar menos" como castigo e aviso de que voltem para casa. A maternidade é entendida como "custo" — afinal, trata-se apenas da perpetuação da espécie e continuidade do mundo.

Claro que se trata de uma visão que entrará em choque com seu oposto, produzindo um conflito inevitável. Num sistema político ajustado e eficiente, os embates em torno dessas diferenças se dão no Parlamento, o lugar mais apropriado para que tudo se mantenha sob algum controle e não exploda numa guerra de verdade, nas casas, nas redes, nas ruas.

Submetidos aos limites de um código e um foro parlamentares, conflitos assim seriam absolutamente normais. Os embates havidos, por exemplo, entre o deputado Bolsonaro e seus colegas Jean Willis e Maria do Rosário fariam parte da democracia e tudo se resolveria na esfera política de instituições capazes de estimular o respeito e conter a intolerância. O diabo é quando se perde o controle e a discordância deriva para a discórdia.

Em torno de Jair Bolsonaro também se localizam críticas, temores justificados, medos e histerias em relação a seu antípoda maior, o PT. Juntam-se aí avaliações em relação ao histórico daquele partido tanto quanto à corrupção, como em relação ao desempenho econômico de seus governos.

Segmento que poderia se articular em torno de Geraldo Alckmin, por exemplo. Mas que se definiu pelo ex-capitão por, pelo menos, duas razões. A primeira, os casos de corrupção que igualmente corroem os tucanos: a complacência com Aécio Neves e que tais, a inegável proximidade com o governo Temer e a aliança com o Centrão.

O segundo ponto é que do ponto de vista da crítica ao perfil econômico e político do PT, para esse grupo, o PSDB ficaria ao meio do caminho. Pois, quando o que se quer é o liberalismo — mesmo no feitio pouco esclarecedor de um "Posto Ipiranga" —, os prepostos de Bolsonaro são mais radicais e incisivos ao prometerem ações e reformas com as quais os tucanos são incapazes de se comprometer.

Desses pontos de vista — seja conservador, ético-político ou econômico —, o ex-capitão conseguiu se impor como a proposta mais radical para setores que entendem ser necessário, sim, radicalizar. Alckmin passa a ser visto como um "Bolsonaro de baixíssimo impacto", um conservador e liberal-econômico deit para quem escolheu fazer regime hiper calórico.

Isso, sem contar, é claro, grupos desde sempre treinados a farejar o poder: quadros preteridos por tucanos e sequer cogitados por petistas, que enxergam o momento que pode ter chegado. E nada é mais incontível do que o oportunista que sente que seu momento, de algum modo, chegou.

Há de tudo um pouco, dos dois lados, é verdade. E assim, também a centralidade que Fernando Haddad pode ser explicada. Pois, é simplismo imaginar que a fonte do crescimento do ex-prefeito se origine exclusivamente no ex-presidente preso em Curitiba. As circunstâncias que se formam parecem tão ou mais importantes que o apoio de Lula.

A retirada, ao longo dos anos, do PSDB do campo socialdemocrata e seu distanciamento de setores progressistas nos costumes deixaram espaço preenchido, na ausência de melhor alternativa, por Fernando Haddad, uma vez que nem Marina Silva e nem Ciro Gomes capturaram plena e integralmente esse setor.

Ademais, Fernando Haddad parece em vias de se beneficiar do antibolsonarismo tanto quanto Jair Bolsonaro tem se favorecido do antipetismo. Neste momento, a força política mais relevante do país são os "antis", divididos entre Bolsonaro e o PT. Um fenômeno normal de segundo turno que se precipita em virtude da inviabilidade — muito mais que da fragmentação — de um centro incapaz de dialogar com a sociedade.

Um centro que, antes de firmar sua personalidade com interpretações claras do mundo e do Brasil, além de uma perspectiva esperançosa para o futuro, prefere atrair restos e sobras dos dois grandes blocos que se formam. Ao que tudo indica, esse centro que não sabe se diferenciar restará espremido entre Bolsonaro e o PT. Soçobrará até que o novo, capaz de captar uma nova, latejante e plural sociedade, se conforme de verdade. Isso levará tempo. Muito tempo, pelo jeito. Talvez, demais.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

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Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.

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