Um curto e marcante contato com Otávio Frias Filho
Carlos Melo
21/08/2018 23h54
Não convivi com Otávio Frias Filho, não privei de sua amizade. Tivemos um único encontro, para mim marcante por uma série de motivos. Foi no dia 11 de março de 1996. Era estudante de mestrado e fazia pesquisa para minha dissertação sobre as relações históricas entre a Folha de S. Paulo e o Partido dos Trabalhadores. Minha intuição me dizia que havia uma interessante intersecção entre o jornal e o partido, antes mesmo de o partido ser fundado e o jornal ter-se transformado no importante veículo em que se tornou.
Na minha memória, lembro que não botava fé que Frias Filho viesse a me atender. Ele era o diretor de redação do jornal, àquela época, o mais importante do país e eu não tinha qualquer conexão com ele, nem possuíamos amigos em comum que tivessem intercedido em meu favor. Apenas arrisquei com pedido por escrito — talvez por meio de uma carta, não sei, coisa assim; então, talvez nem mesmo o e-mail existisse.
Para minha surpresa, Otávio me recebeu e reservou duas horas inteiras para nossa entrevista. Sério, cordial, atento, respeitoso, foi assim que me tratou.
Eu estava interessado em saber como se dera a "virada" do jornal; como a Folha havia se transformado no jornal da abertura, por volta de 1974, e como depois, em 1977, fora obrigada a destituir o jornalista Cláudio Abramo da direção do jornal, por pressão dos militares. Aliás, entender também o papel dos Abramo – Cláudio e Perseu – na história do jornal.
Sem mistério, nem afetação, com simplicidade e enorme objetividade, num elevado senso crítico sobre seu papel e o papel do jornal de sua família, Otavinho — como era chamado por aqueles que pareciam lhe ser íntimos naquele período – abriu tudo o que precisava. Colocou as cartas sobre a mesa, contando em detalhes o que sabia, sem escamotear nem fantasiar.
O trecho mais impressionante segue abaixo, trata do talvez principal momento na história do jornal, o momento de inflexão marcado pelo encontro de seu pai, Otávio Frias, e o general Golbery do Couto e Silva, que em alguns dias viria a ser o homem forte do governo de Ernesto Geisel. É certamente um importante momento da história do Brasil e, a meu juízo, bastante útil para compreender a transição do regime militar para a democracia. A dinâmica política e o papel dos atores.
"De fato houve um encontro, eu acredito que em janeiro, mais tardar fevereiro de 74, porque o Geisel tomou posse em 15 de março de 74 e este encontro eu me lembro que ocorreu a convite do general Golbery antes da posse do novo governo. O grupo Geisel-Golbery vinha mantendo um escritório no Largo da Misericórdia no Rio. Meu pai achando que seria um encontro interessante me convidou para ir junto com ele. Eu cheguei a ir até o aeroporto com ele, não cheguei a embarcar porque esqueci a cédula de identidade. Por conta disso eu não presenciei esse encontro. O que eu posso reconstituir, assim de memória, com base do que o meu pai relatou, foi que de uma maneira bastante vaga, sem uma agenda, sem pauta, de uma maneira bastante vaga, o Golbery expôs o que veio mais tarde a ser conhecida como a doutrina, dele Golbery, da sístole e diástole dos sistemas políticos. E ele achava, então, que o regime tinha passado por um momento de grande concentração de poder e tudo… e que essa concentração vinha gerando distorções, na visão dele, cada vez mais perniciosas e que o governo Geisel era um governo que se disporia a promover uma desconcentração de poder e uma descompressão política. Nem sei dizer quais foram os termos que ele usou na época… se teria usado distensão, se teria usado abertura. Não sei precisar a terminologia. O sentido da conversa era muito esse, embora fosse uma conversa vaga, como eu disse. Era a disposição do novo governo de descomprimir de alguma forma o ambiente político. E ao mesmo tempo eu me lembro, pelo relato do meu pai, que o Golbery fez insinuações no sentido de que era muito ruim para qualquer governo, portanto para o governo que estava para tomar posse, que houvesse só um jornal irradiando informação em São Paulo — ele se referia aoEstado de S. Paulo— dando a entender que seria importante que aFolhaavançasse na direção de passar a ter uma disputa mais efetiva com o jornal O Estadoem termos também de irradiação política e de influência na opinião pública etc…. Ele, evidentemente, não mencionou nenhum tipo de auxílio, nenhum tipo de apoio que o governo poderia prestar ao jornal, nem naturalmente isso foi pedido a ele, mas ele deixou assim….de alguma forma colocado que o governo federal veria com bons olhos se houvesse uma divisão, digamos, do peso de influência da imprensa em pelo menos dois jornais diferentes".
Como disse, a objetividade com que o jornalista me contou o fato chamou minha atenção. Na pesquisa que fazia, não encontrara o fato assim detalhado – e nem sei se depois algo nesse sentido chegou a ser publicado. Mas, não foi apenas isto. Pouco adiante, Frias Filho se dispôs a interpretar o acontecimento e seus desdobramentos no interior da empresa. Impressiona o modo como reconhece o papel de outros atores envolvidos com a reinvenção do jornal, sobretudo, Cláudio Abramo.
"…foi da parte do meu pai, uma percepção de que as coisas estavam mudando no país. Era importante, portanto, que o jornal mudasse…Ele tinha uma convicção de que tinha dedicado, digamos, vários anos de trabalho e de prioridade à reorganização financeira da Folha. A Folha estava, por esses anos, contando novamente com uma situação sólida em termos financeiros e uma reorganização industrial também. A Folha renovou todo o parque gráfico (…) modernizado do ponto vista tecnológico e numa situação financeira estável. Eu acho que a partir desse momento ele achou que era, de fato, a ocasião. Seja por essas razões de condições internas, seja por condições externas: o ambiente político, essa coisa da conversa com o Golbery etc… Ele achou que era o momento do jornal se politizar mais, do jornal se abrir mais para as tendências que estavam começando a aparecer, que estavam emergindo. Isso se casou muito bem com o Cláudio Abramo. Eles eram amigos. Sempre tiveram um relacionamento, por um lado muito tenso — era frequente haver desavenças e aborrecimentos recíprocos —, por outro lado tinham uma relação de confiança, de amizade mesmo, que vinha desde o começo dos anos 60. O Cláudio Abramo, era um grande jornalista… um homem de grande talento como editor, como desenhista, como… não repórter, porque ele foi repórter muito no começo da vida, mas um jornalista muito completo e de muito talento. Então eles dois começaram a mudar o jornal: a "Tendências & Debates", que no primeiro momento chegou a chamar "Análises e Perspectivas", foi uma ideia do meu pai, que foi tornada realidade pelo Cláudio Abramo. Meu pai insistia muito que achava que o jornal deveria trazer todos os pontos de vistas, que o jornal deveria ser uma vitrine com diferentes opções de pontos de vistas etc, etc. E as coisas começaram um pouco pela reforma jornalística que o Cláudio fez no jornal (…) editorialmente a reforma começou com essa mudança de atitude política, no sentido de se politizar mais o jornal e no sentido de o jornal trazer para, especialmente, às primeiras páginas, as páginas de opinião, um embrião de debate político ideológico e tal… Ao longo desses anos de governo Geisel, várias pessoas que estavam excluídas da vida pública voltaram à vida pública na condição de colaboradores da Folha".
Como disse acima, foi um encontro marcante. Foi a primeira experiência que tive a sensação de discutir seriamente e em bom nível a história do Brasil; compreender, ou mais tentar, o processo político brasileiro; obter de uma fonte primária, digamos assim, um relato original de um fato realmente importante. Ademais, antes de decidir cursar Ciências Sociais, eu sonhara ser jornalista; escrever, um dia, num grande jornal e lidar com aquele objeto de algum modo tangenciava meu sonho. Sou da geração que aprendeu a ler jornais tendo a Folha como referência.
E eu estava ali diante de um grande jornal; complexo, cheio de ambiguidades. Percebia na postura de Otávio a determinação de dar continuidade ao processo começado por seu pai e por Cláudio Abramo – o jornalista Mino Carta gosta de afirmar que Cláudio foi também pai de Otávio, seu "pai jornalista". De um modo ou de outro, penso que Frias Filho tenha levado esse compromisso com os "pais" até o último dia.
Além disso, outro ponto que vale a pena mencionar, era a minha natural e estrutural dureza financeira. A pesquisa era feita com dinheiro contato de uma bolsa do CNPq que também servia para pagar as despesas da casa e da família. Os arquivos da Folha – nada digital, tudo em papel – eram trabalhosos, complicados e, pior, a consulta a eles era cobrada. Sem que eu pedisse, mas talvez suspeitando de minha condição, o diretor de redação me franqueou o acesso aos arquivos, às fotos, ao que fosse necessário.
Eu e meu orientador, o querido Miguel Chaia, ficamos impressionados com a postura do jornalista, do diretor de redação, herdeiro do jornal. Quando defendi a dissertação, sendo aprovado, enviei uma cópia a Otávio. No todo, o texto possui trechos que reconhecem o papel do jornal, mas há também passagens bem críticas, colhidas em depoimentos de profissionais – e ao mesmo tempo militantes de esquerda – que trabalharam no jornal e conviveram com a família Frias. Evidente, que há pontos de vista polêmicos.
Nunca soube a opinião de Otávio a respeito do trabalho. Se gostou ou não, se leu, não se manifestou. Minha opinião, consolidada hoje em dia, o mais provável que não tenha lido. Ao final e ao cabo, ele não tinha exatamente interesse específico no que eu faria. Apenas contribuía, no que lhe cabia, para que eu tivesse condições mínimas de fazê-lo. Sempre – e não apenas por isso – guardei imenso respeito por ele, respeito intelectual e pessoal. Hoje, no dia de sua morte, faço silêncio como um lamento e em agradecimento. Eu lhe devia essa.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Sobre o Autor
Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".
Sobre o Blog
Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.