Política e eleição: uma prévia para pensar em Bolsonaro e Marina
Carlos Melo
03/07/2018 09h54
Política e eleição são um "rabo de galo", pinga e vermute que se completam sem perder especificidades. Preenchem o mesmo recipiente, mas se distinguem. Política contém eleição, mas é mais ampla e sobrevive ao seu momento; a eleição carrega a dinâmica e os conflitos da política, mas é um ponto isolado em sua timeline. É um erro confundir, sem critério e distinção, seus elementos. Uma coisa é a amplidão do céu; outra, o movimento das nuvens.
Um senso comum, instrumental, pretensamente científico — será mesmo a política uma ciência, ou ciência seria apenas o seu estudo? —, insiste em pensar a política apenas por seu aspecto eleitoral. Organiza-se números, constrói-se tabelas, retira-se correlações. É interessante e mesmo importante para compreender o passado e o processo, mas nem sempre tem valor preditivo. A política se dá a cada dia, num torrente de eventos e fatos que, se não alteram o passado, indeterminam o futuro.
Com efeito, em tempos normais, a eleição tem uma dinâmica conhecida. Os instrumentos eleitorais contam e muito: tempo de TV, capilaridade partidária, apoios, dinheiro, marqueteiros e, mais recentemente, redes sociais. Em tempos normais, ganha-se uma eleição possuindo e manejando esses instrumentos; pode-se dizer que há uma "técnica eleitoral".
Contudo, o raciocínio mecânico não basta para estruturar a análise eleitoral, pois a política ainda é o leão que ruge nesse reino. A dinâmica das últimas eleições; o que demonstram os dados e as curvas de seus gráficos; as correlações, ações de causa e efeito; quem detém os instrumentos de campanha… Isso tudo conta. Mas, pequenas séries históricas, a sobreposição de gráficos e curvas não são suficientes para desvelar o futuro como se a história não evoluísse.
Seria fácil se não fosse difícil. Questões subjetivas, somente pela impossibilidade de quantifica-las, não podem ser desprezadas. Às vezes, uma eleição é apenas uma eleição. Não se pode transformá-la num fetiche. Nem banalizar a política, submetendo-a à exclusiva lógica eleitoral.
Se eleições se relacionam com condições materiais, a política não se define por elas. Ondas de informação e as circunstâncias subjetivas que a cercam também contam, e contam muito em situações de estresse. Além dos recursos de campanha, momentos históricos, fatos, traumas, espírito do tempo precisam ser considerados. O zeitgeist, como dizem os alemães, tende a se impor à simples materialidade dos instrumentos eleitorais.
Por isso, é impossível desprezar todo o processo que transcorreu ao longo desses anos: o Junho de 2013, a torta eleição de 2014, o impeachment, a Lava Jato; a derrocada moral de PT, PSDB e MDB; o sistema político em colapso, a economia claudicante, a impopularidade do governo, o desprezo pela política, o mal humor do eleitor, o renascimento da direita, a crise da esquerda, a agonia do centro. O líder das pesquisas na prisão.
Ao se considerar apenas os aspectos instrumentais da eleição de 2018, retirando-lhe o conteúdo político e a influência da história, pode-se, ok, imaginar como certa a reedição da polaridade PT x PSDB. Como se mais nada tivesse ocorrido, como se o país tivesse hibernado por anos, acordado somente após a Copa do Mundo, com os mesmos olhos e ilusões de 2014.
Mas, muita lágrima correu, alguns cristais trincaram. Os traumas do tempo são recolhidos como rosas num jardim — ou latinhas de cerveja no chão de uma manifestação na Av. Paulista. O país não é o mesmo. Muita coisa mudou, ainda que as estruturas de poder ainda correspondam às condições definidas em 2014.
Isto nos obriga a considerar questões políticas de fundo, admitir a possibilidade de mudança. O mais possível é que não bastem uniformidades eleitorais do passado, duvidosas em tempos bicudos, repletos de zonas de sombra que diminuem a visibilidade do ambiente a previsibilidade do cenário. Imprescindível considerar o ambiente, as angústia, o mal-estar, o zeigest. Os dados, á claro, ajudam, mas não bastam.
Somente assim, com isto posto, pode-se especular em torno das chances de Jair Bolsonaro e Marina Silva, candidatos sem estrutura partidária e recursos de campanha. Confrontados apenas com a dinâmica eleitoral do passado, eles estariam fora do jogo. Mas, a política não é apenas isso. Bolsonaro e Marina ficarão para o próximo artigo. No mais e por enquanto, "pra frente, Brasil".
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Sobre o Autor
Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".
Sobre o Blog
Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.