O indulto e seus caronas
Carlos Melo
15/03/2018 23h47
Mortes por doenças tratáveis superam mortes violentas nas prisões brasileiras. Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ
Tenho enfatizado que não sou jurista; sequer advogado. Não sustento suposto honoris causa agasalhado na soberba e na pretensão de compreender o que desconheço. Não creio que o tema possa ser passatempo para curiosos. Quando me refiro à Justiça, data a máxima vênia, o faço somente na virtual confluência que tenha com a política. A política é o meu tema. Mas, essa união de corpos — Justiça e Política — tem sido, contudo, muito frequente.
A Justiça que tem se transformado em questão política não é para iniciantes. Trata-se de mistura perigosa. Algo como transformar pólvora em utensílio de cozinha. O conflito político é inevitável e quanto produz impasses, deveria ser a Justiça o árbitro das desinteligências. Quando isso se inverte, estamos perdidos.
O primeiro efeito disto é que, assim como ocorre com a moda gastronômica — sem saber fritar um ovo, o sujeito se enxerga Chef de Cuisine — explodem juristas de botequim pelo país afora. Uns a favor de qualquer coisa, e outros exatamente contrários ao que quer que seja. E jactam-se da pretensão de ser o que não são. Já eu admito meus limites.
Todavia, o vício torna irresistível mexer com essa pólvora que ferve na panela e causa combustão política. Refiro-me ao quiproquó que se dá em torno do decreto presidencial de Indulto de Natal, suspenso pela Justiça. Necessário entender do que se trata.
Assuntando o tema, descobre-se que Indultos de Natal, dentro de critérios claros, servem para libertar condenados sem periculosidade, que já cumpriram boa parte da pena e, nas condições penitenciárias do país, é mesmo melhor que sejam libertados, rapidamente.
São de prerrogativa dos presidentes da República. FHC, Lula, Dilma e agora Michel Temer concederam indultos. Embora sejam um instrumento estranho, meio sem pé nem cabeça — o correto seria que legislação ordinária estabelecesse, definitivamente, os parâmetros — se consolidou na tradição brasileira. Como a Jabuticaba, afirma-se, só existe no Brasil.
Indultos são necessários em virtude de detalhes tão simples quanto chocantes: abarrotado de corpos e almas, o sistema carcerário nacional é o inferno na terra. Abriga muita gente que não deveria estar ali. Casos em que caberiam penas alternativas; e tantos outros esperando respostas de uma Justiça lenta que protela a liberdade de quem já poderia estar em casa, tentando recomeçar a vida, em outros termos.
A política carcerária do Brasil, o tamanho população que abriga, as condições em que a abriga e a efetividade de seus resultados não são apenas um escândalo. São mesmo o desastre humano escondido sob a indiferença. Logo, no Brasil, indultos fazem sentido, sim.
Na forma de jeitinhos e gambiarras, ficam a cada ano por conta da decisão do presidente da República. O problema, portanto, não reside no indulto, nem na prerrogativa presidencial. Como tudo, entre a virtude e o vício estão a contenção ou o excesso com que se manobra as gambiarras.
Para mitigar riscos de discricionariedade, definiu-se que indultos sejam baseados em minutas e recomendações do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Além do Código Penal, é claro. Sem muita distorção, isto é normalmente observado pelos presidentes da República.
Mas, no Natal passado não foi bem assim. Até onde pude compreender, crimes do colarinho branco são excluídos das recomendações do Conselho. O indulto não pode ser para gente perigosa e a corrupção continuada é um perigo. Ademais, para ter o direito, o detento precisa ter cumprido parte da pena. A média da série histórica dos indultos aponta que os benefícios foram normalmente concedidos a quem havia cumprido pelo menos 1/3 das penas que, também pela média histórica, não eram superiores a 8 anos de prisão.
Michel Temer, no entanto, optou por outros critérios: reduziu o cumprimento da pena abaixo da média, estabelecendo um 1/5 (20%) do tempo de condenação, elevando esse período para além dos 8 anos — na verdade, deixando sem limites. Além disso, incluiu o crime de colarinho branco entre os beneficiados, contrariando a visão do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, como também determinações do Código Penal.
Coincidência das coincidências, o indulto de Michel Temer acabava por beneficiar condenados pela Operação Lava Jato, contrariando legislação em vigor. Ora, não está na Constituição que indultos possam se sobrepor às leis. A Constituição define o direito de indultar, mas não que indultos atropelem as leis do país. Toda gafieira tem, afinal, seu estatuto.
O fato é que os crimes de colarinho branco, em especial da Lava Jato, pegariam carona na inegável necessidade de indulto. Invertia-se, assim, os termos do alerta que diz "por onde passa um boi passa uma boiada". No indulto de Michel Temer, por onde passaria a boiada carente e merecedora, passariam ilesos uns tantos bois gordos, vistosos e malhados pela opinião pública. Absolutamente, fora da lógica e do princípio do indulto.
Ao que parece, o presidente não teria apenas indultado, teria legislado. Na democracia, não é razoável que sob um único indivíduo recaia tanto poder, mesmo sendo presidente da República eleito ou popular — o que não é ocaso. Faltam pesos e contrapesos? Pois, a novidade é justamente esta: pelo menos neste caso, não faltaram.
A Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, questionou o indulto de Michel Temer, levando o caso ao STF. Durante o recesso, a presidente do Supremo, ministra Carmen Lúcia, acolheu o questionamento da PGR, suspendendo o decreto. O caso deveria ser decidido pelo Plenário, mas, não foi pautado. Caiu nas mãos de Luís Roberto Barroso — em outros processos, pedra no sapato de Michel Temer — que resolveu observar a lei, dando também ele razão à PGR.
Com o balanço dos dias, o ministro acabou pressionado por Defensorias Públicas de todo país: a suspensão do indulto tinha efeito deletério. Barrava colarinhos brancos, mas retirava o direito dos presos enquadrados e merecedores. Fez-se um buraco negro jurídico que somente Stephen Hawking pudesse decifrar. O impasse estava criado. Em nome da Justiça e da funcionalidade do sistema, qual a alternativa: libertar bacanas da corrupção, engolindo o free rider, carona?
Barroso desatou as próprias mãos e desfez os nós da questão: acolheu a suspensão apenas em parte. Manteve os bois gordos nas celas, soltou a maioria magra que fizera jus ao indulto. Aliviou o peso sobre o sistema e foi ao encontro da opinião pública. Seus detratores querem, agora, seu impeachment. Também eles pegam carona para ir à desforra de outras rixas. O Brasil não é mesmo para principiantes.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Sobre o Autor
Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".
Sobre o Blog
Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.