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A ansiedade econômica e os limites de Lula

Carlos Melo

04/01/2018 09h33

Eduardo Frazão/Framephoto/Estadão Conteúdo.

Na visão que o cidadão comum tem da política, são naturais a mitificação de personagens e a construção artificial de ídolos. O líder emerge abstrato e absoluto, como se tudo dependesse de seus méritos e virtudes; é entendido como uma espécie de herói. Nada mais equivocado. É claro que personalidade conta, mas isto pode simplesmente sucumbir à falta de oportunidade histórica, sem nunca ter encontrado sua hora e sua chance. As circunstâncias são tão ou mais importantes que os atores.

Recentemente, em mais um de seus jogos de palavras, com vistas a diminuir resistências e ampliar seu campo político, o ex-presidente Lula declarou-se um moderado; disse não ser um radical político e que, portanto, não deveria ser temido por agentes econômicos, que poderiam aceita-lo sem qualquer prevenção. Fez sucesso porque disse o que seus interlocutores pediam para ouvir.

De fato, em que pese discursos de palanques nas caravanas pelos rincões do país nas quais se embrenha, Lula nunca foi mesmo um radical. Ainda nos tempos da ditadura, questionado se era "comunista", respondera: "não, sou um torneiro mecânico". Distanciava-se, já naquele momento, de ilusões políticas e das amarras ideológicas de muitos de seus companheiros. Não era socialista, nem comunista, nem esquerdista; era tão somente um pragmático.

A declaração de 2017 fez despertar, então, toda sorte de comentários e análises voltados a amenizar a sensação de risco com a eventual vitória de Lula, na eleição deste ano. Raciocínios dispostos a resgatar o comedimento e a moderação que, de fato, houve, sobretudo, nos primeiros anos do governo do PT, no primeiro mandato do ex-presidente (2003-2006), o que, na ocasião, surpreendeu muita gente.

Com efeito, Lula nunca foi mesmo nada disso. Sua personalidade política é conciliadora, distancia-se de qualquer furor em torno de concepções vinculadas à luta de classes ou a abstratos maneirismos intelectuais. Sua visão de mundo é simples: no fundo, um sonho de classe média — o que se pôde notar, inclusive no campo pessoal, pelas agruras em que se meteu, bem mais tarde, com idílicos sítios de lagos e pedalinhos ou modestos apartamentos tríplex.

Mas, a questão, como se disse acima, é que em política a personalidade conta pouco. Ou antes, ela só será expressiva se as circunstâncias permitirem, se a história colaborar.

Na eleição de 2002, era possível dizer aos desconfiados agentes de mercado que Lula, uma vez eleito presidente da República, não seria o bicho papão que muita gente pintara; no fundo, no fundo, no fundo, sempre esteve mais para "Lulinha paz e amor". É seu temperamento. Mas, havia ali uma série de condições que favoreceriam a moderação e a conciliação, que estavam muito além de sua disposição e caráter pessoais. O país e o mundo viviam momento diferente.

Em primeiro lugar, desenhava-se ali um quadro econômico positivo. Com a China, finalmente, absorvida pela Organização Mundial do Comércio, vislumbrava-se o "choque de commodities", que favoreceu imensamente a economia brasileira. Claro que Lula poderia desprezar essa chance e pôr tudo a perder desde o primeiro momento. Mas, não o fez por uma série de motivos.

Após inúmeras tentativas, sua vitória eleitoral foi recebida com otimismo — ou pelo menos condescendência — por amplas parcelas da população, entre elas, a classe média dos centros urbanos e mesmo os setores de elite que lhe deram o benefício da dúvida e a oportunidade de provar ao que viera. Houve, sim, após a eleição, mais um voto de confiança.

Essa boa vontade recaía também sobre o PT, que até ali, expressava o resgate da esperança e da virtude moral. Ocupara, por anos, o confortável espaço da oposição "contra tudo isto que está aí"; suas lideranças, algumas míticas, abrigavam-se à sombra dos "heróis da resistência à longa noite da ditadura", como se dizia. É irônico dá-se conta, hoje, do romantismo dessa atmosfera em torno do PT.

Além disso, o PT de então possuía quadros políticos de outra qualidade — Luiz Gushiken, José Dirceu, Antônio Palocci entre outros — que permitiram ao governo atrair parte significativa da inteligência nacional. Foi possível dar sequência à manutenção da estabilidade da moeda, fazer ajustes e aperfeiçoar políticas públicas, em virtude da capacidade de entendimento e articulação desses quadros políticos.

E, por último, em que pesem tolices a respeito da "herança maldita" que petistas diziam ter recebido do antecessor, a realidade é que Fernando Henrique legou ao país um governo e um Estado bem mais equilibrados do que se possa imaginar encontrar em 2019. Política, econômica e administrativamente, o Brasil era outro, em condições imensamente mais favoráveis que as atuais. A credibilidade dos agentes políticos era incomparável com a atual.

Eventual futuro presidente, nada disto Lula terá novamente. Eleito, tende a ter contra si a maioria da classe média, sobretudo, do Sul e Sudeste do país; o Poder Judiciário, o Ministério Público. E mesmo que consiga compor com o Congresso Nacional, o preço dos apoios será significativamente elevado, inflacionado pelo fisiologismo sabedor da dramaticidade, resultante da necessidade e urgência que presidente e governo terão.

Em paralelo, diante desse quadro de pressões — que estarão presentes já durante a campanha —, como Lula poderá negar retribuição a setores sociais e políticos que estarão ao seu lado, na eleição e após, sustentando-o nas ruas? Como poderá voltar-se, por outro lado, mais uma vez, para aqueles que o estigmatizaram na sociedade, na Justiça e no mercado?

Se em 2003 Lula soube moldar-se às circunstâncias favoráveis que o cercavam, em 2019 terá que transformar as péssimas condições políticas, sociais e econômicas a que será submetido. Mais do que do limão uma limonada, fazer melaço do fel da bílis que o amarga. Isto exigirá do ex-presidente muito mais do que pôde demonstrar até hoje; uma liderança extraordinária que se coloque e se imponha sobre as circunstâncias.

Casos assim são raros na história da humanidade, Lula teria que ombrear-se a um Lincoln, a um Churchill. E o ex-presidente parece estar bem aquém disto. Aliás, não apenas ele, no Brasil e no mundo contemporâneos. Por isso, é bom colocar os pés no chão, compreender os personagens e, sobretudo, as circunstâncias que os cercam. O processo político é muito mais complexo do que supõe os desejos e vã ansiedade.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

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Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.

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