Qual será a "polaridade" de 2018?
Carlos Melo
30/11/2017 07h00
A polarização eleitoral é questão sempre repetida, quando se vislumbra as perspectivas de 2018. Diante das pesquisas, dá-se a leitura óbvia de um cenário de barbárie, com a radicalização da disputa: o conflito "esquerda" e "direita" se aguçaria na tensão "Lula versus Bolsonaro". Claro que não pode ser descartado. Mas, a precipitação leva à aflição quase histérica em busca do tal "centro democrático", como alternativa virtuosa para o embate. Contudo, também aí pode haver simplismo, interesse e má fé. O momento requer olhar fora da caixa, pesar outras possibilidades.
Nos últimos anos, desenvolveu-se o estigma do "lulismo" e a surgimento de seu antagonista, o "anti-Lula". Por motivos óbvios, é natural que o ex-presidente seja um dos polos políticos, gerando também quem pretenda pegar carona em sua rejeição. Desde o impeachment, tentativas de forjar o "anti Lula" têm sido frustradas. Normal.
Mas, o surgimento de Jair Bolsonaro é anterior a isso, não sendo apenas um "anti-Lula". Embora seja um de seus antagonistas, por excelência — assim como de muita gente —, o parlamentar-capitão desenvolveu identidade própria, é um duro (hard) à direita, e expressa mais que isso: há nele uma concepção de Estado e Sociedade — talvez pouco sofisticada, mas há — que precede o ocaso do petismo e, gostemos ou não, deve ultrapassa-lo como tendência histórica.
Bolsonaro, no entanto, não é o ponto; a questão é o atilulismo como estratégia eleitoral. Antes de tudo, é conveniente considerar que, para que emerja um "anti-Lula", será necessário que haja, de fato, um Lula ou congênere capaz de representa-lo à altura de sua penetração política.
E nesse sentido, nem a mais arraigada a fé petista é capaz de responder se de fato Lula será candidato; sequer se estará em liberdade. Há indícios fortes para se suspeitar que não. E, não sendo, conseguirá o ex-presidente parir, com sucesso, um "sucessor" eleitoralmente competitivo? Difícil afirmar. Mas, se essa polarização pode ir para o espaço, ela não deveria virar fixação.
Ora, mesmo assim, ela interessa a setores chamados de "centro", pois a ideia da precoce polarização "esquerda" versus "direita" constrói-se o campo da "alternativa", não por projeto, mas por "rejeição" antecipada a Lula e a Bolsonaro. Sim, a dupla, realmente, pode concorrer e pagar ponta e placê no turfe eleitoral, mas despertar desde já seu fantasma também traz lá vantagens para quem está de fora e quer entrar na corrida. Não há melhor elemento de formação de crença do que o medo.
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Chega-se, então, ao segundo ponto: os "polos" de 2018 podem perfeitamente ser outros.
Não seria de estarrecer se ao fim e ao cabo 2018 revelar uma divisão eleitoral mais profunda em torno do tema da corrupção e do vínculo (ou não) dos políticos com o sistema. Sendo assim, Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer, Aécio Neves — PT, PMDB e PSDB — et caterva, ironia das ironias, estariam no mesmo polo político e não em lados opostos do ringue.
O jogo fica aberto e um amplo leque de personagens entra em campo — além de Bolsonaro, Marina Silva, Ciro Gomes, João Amoedo e Álvaro Dias, por exemplo —, em prejuízo de nomes diretamente envolvidos com revelações da Operação Lava Jato ou contaminados por identificação: o ungido por Lula-PT, o candidato de uma frente PMDB-PFL (com apoio do Planalto) ou um tucano que não saiba ou não consiga se desvencilhar de Aécio Neves e Michel Temer (Geraldo Alckmin, por exemplo).
Outra possibilidade, ainda mais radical, pode ser a polaridade "continuidade versus disrupção". Trazendo, assim, outsiders que ganhem relevo em detrimento de personagens desde sempre identificados com a política e o sistema político que degringolou — sendo todos parte "disto tudo que está aí", como poderá dizer, com rancor, a voz das ruas.
Do eleitor mediano, descontente e crítico, emergiria, então, um candidato capaz de prometer o descarte do velho e a construção do "novo". Falsos ou verdadeiros profetas, não vem ao caso, o fato é que, nesse contexto, nomes como os de Joaquim Barbosa e Luciano Huck não poderiam — e não podem — ser descartados. Ansiedade de lado, há, desse modo, pelo menos três possibilidades de "polarização". Por que pensar apenas em uma?
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A pouco menos de um ano da eleição e numa conjuntura extraordinária, a incerteza articula uma parcela do autodenominado "centro democrático", que busca o caminho que melhor lhe convém. Ergue-se contra ao chamado "lulopetismo", dando-lhe exclusividade de foco como quem quer ocultar as próprias sombras. Faz sentido; é engenhoso.
O fato é Lula e seus companheiros são, na verdade, convenientes ao Planalto e a seus aliados — que hoje abriga o "Centrão" e parte do PSDB.
Como imagem, o "lulopetismo" serve muito bem como espantalho; boi-de-piranha para que a manada atravesse o rio; melhor lutar contra hipotéticos moinhos de vento do que contra o dragão de verdade: a sanha moralizadora de justiceiros e a ação da Justiça. Discursos já na praça, como o programa de TV do PMDB ou manifestações de setores do PSDB revelam mais pelo que ocultam nas narrativas que produzem.
É claro que o ex-presidente e o PT têm muito mais que dívidas no cartório; eticamente, erraram como o diabo e são responsáveis por grande parte da ruína do sistema político nacional, além do desastre econômico. Mas, não agiram sozinhos: foram apoiados, em coalizão inclusive. E, no que diz respeito à corrupção, tiveram genéricos com o mesmo princípio ativo também na oposição.
É evidente que há a questão econômica e uma agenda tão polêmica quanto necessária pela frente, que precisará ser enfrentada neste e nos próximos governos. Ela pode e deve compor o debate eleitoral, mas limitar-se a ela é fugir de outras questões tanto mais importantes. Pela economia, mais uma vez, tenta-se querer eclipsar questões políticas, como a Lua que finge desconhecer, afinal, quem é de fato o astro rei. É mesmo um jogo de ilusão; o desafio é perceber o truque.
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Mais uma vez, a análise sobre 2018 não pode cair em armadilhas ou narrativas contadas pelos atores políticos e seus interesses. É necessário qualificar o que tem sido chamado "centro democrático", pois dessa cartola têm surgido coelhos das mais variadas cores e espécies.
Em primeiro lugar, o adjetivo "democrático" mistifica e confunde – disse Sérgio Buarque que "no Brasil, a democracia sempre foi um lamentável mal-entendido"; com efeito, trata-se de uma palavra gasta. Justifica-se por não ser autoritário; ou é necessário que seja também republicano, não clientelista e não patrimonialista? Democracia exige impessoalidade e transparência.
Por conta disto, o "Centro Democrático", no Brasil, é algo de entendimento complexo; às vezes paradoxal. A afirmação pode soar absurda do ponto de vista geométrico, mas é preciso dizer que, em política, o "centro" nunca é um só. São muitos, cabe um universo em seu intervalo.
Fragmentado que está por diferenças concepções e práticas em relação à coisa pública (res pública), ainda mais difícil é unifica-lo num mesmo condomínio político-eleitoral, como buscam fazer correntes do PMDB e do PSDB. Hoje são as diferenças e distâncias entre atores desse campo são mais marcantes que as identidades que eventualmente possam ter em relação a reformas ou criticas ao lulopetismo.
Modelos tendem à simplificação, mas não podem ser simplórios: há hoje pelo menos dois "Centros" na política brasileira. Um é hegemonizado pelo PMDB e, eminentemente fisiológico, contém o "Centrão"; arvora-se de toda e qualquer reforma econômica e está encrencado até os dentes com a Operação Lava Jato.
O outro "Centro" incorpora as mesmas reformas, é crítico aos governos do PT, mas guarda críticas também ao fisiologismo peemedebista, postulando práticas republicanas. Quer-se limpo nas questões éticas e distância com as mazelas reveladas pela Lava Jato. São questões de fundo.
Dois mundos e duas lógicas. Grosso modo, o primeiro poderia ser chamado "Centro Fisiológico" e o segundo "Centro Republicano" — e também aqui haveria generalização e simplismo, ainda que, de maior alcance, separe joio e trigo.
Enfim, conflitos ideológicos tradicionais à parte, talvez esta seja a mais profunda e real polaridade da política nacional: a polarização pode se dar entre "republicanos e patrimonialistas". Engana-se ou é enganado quem se limite a enxergar a polarização pela exclusiva ótica do "Lula versus Bolsonaro", colocando o impreciso "Centro", de modo maniqueísta, no campo do "bem" contra o "mal". Política, nem sempre sobra espaço para o "bem". O jogo é sempre mais complexo e brutal.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Sobre o Autor
Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".
Sobre o Blog
Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.