O Ulisses, de Luciano Huck
Carlos Melo
27/11/2017 09h13
Publicado na Folha, de hoje, o artigo de Luciano Huck, aparentemente, coloca fim à especulação de que o apresentador da Rede Globo de Televisão pudesse vir a ser candidato à presidente da República. É um artigo relativamente longo, desenvolve um raciocínio lógico e inteligente e está muito bem escrito. Chama atenção pelo que foi dito, pelo que faltou dizer e, sobretudo, pelo o que ainda pode ser dito.
Logo na abertura, diz seu autor que — como Ulisses, herói d e "A Odisseia" — precisou se amarrar ao mastro para não ser levado pelo canto das sereias, que provavelmente insistiam em sua candidatura presidencial. Com efeito, nos últimos meses, Huck foi alçado ao lugar de candidato outsider, independente e crítico a um sistema político anacrônico, decadente, sem credibilidade. Espaço que está em aberto e ele poderia, naturalmente, ser fisgado.
Mas, a questão que fica em seu texto, com sua bela figura literária da mitologia grega, é que, se foi necessário amarrar-se a um mastro, é porque a ideia lhe encanta e seduz.
Ora, não sabe Huck que a fascinação que sentiu não está nas sereias — a fantasia de um ser metade peixe, metade mulher — mas no homem que singra os mares, tem desejos e sonha com aventuras? O canto das musas não vive solto no ar; mora, antes, dentro de Ulisses.
Heróis gregos à parte, o texto traz um diagnóstico sério, certo e sensível: o degradado sistema político nacional já não atende às necessidades da sociedade; requer renovação, mudança de mentalidade, nova postura e disposição. Viciado no fisiologismo, tornou-se um custo enorme que precisa ser removido. E não será pela negação à política, mas por sua reinvenção — a Política com "P" maiúsculo — que o país sairia desse labirinto (cujo herói é Teseu, não Ulisses).
Huck se coloca nesse contexto: não renega e diz pertencer a tentativas de renovação e transformação da política, que pululam em vários cantos do país. Afirma que sua geração precisa se envolver, agir; o que também é fato. E, nesse sentido, categoricamente, promete que atuará "cada vez mais", de acordo com suas crenças, com "fé enorme no país".
O lutador não sai da lida; diz que está ali, na luta. Logo, à disposição do contexto e da conjuntura da política, que — ao contrário do barco de Ulisses que, naquele momento, ruma para casa — vai à deriva, deixando-se levar por um ambiente de turbulências, surpresas e imprevistos.
Huck não diz, mas sabe que embora possa ser dono de sua vontade, não é dono do futuro. E o futuro, às vezes, faz com que não sejamos donos de nós mesmos. É o que Ulisses chamaria de "destino" — a Odisseia está repleta de suas ironias e fez com que o herói levasse vinte anos até que pudesse regressar aos braços de sua Penélope.
De modo que nem sempre é tão simples dizer "estou fora". Sobretudo quando o herói se compreende como um abnegado capaz de conhecer e compreender o novo, articular inteligências e amarrar as pontas de uma sociedade à deriva; ainda mais quando há espaço para alguém assim, no ambiente e no imaginário político.
Esse sentimento a respeito de si próprio está no texto. Basta que se leia com calma. As portas de Huck para a política parecem mais abertas do que fechadas; ainda que o herói, momentaneamente, se amarre aos mastros.
Verdade que ninguém domina o futuro e por isso mesmo não se pode dizer que tudo que está ali escrito compõe o rascunho que uma odisseia que ainda pode ser escrita. Não se pode afirmar que o texto é feito, de caso pensado, para que logo mais adiante seu autor ressurja candidato. Huck não controla os ventos, como o PPS que, por ansiedade pode bandear-se rapidamente para outros nomes; e seria leviano dizer que possui acordos com seu patrão — faltam elementos para isso.
Ainda assim, no navegar de Huck há um mar de possibilidades: a busca pelo outsider, candidato disruptivo na política nacional não cessará tão cedo; há um centro político esfacelado, dividido entre uma banda republicana e outra fisiológica; quem o reconstruirá, por dentro?
Não se trata de defender ou não sua permanência no jogo. Isto não me cabe. Apenas considerar que em política nada é definitivo. Logo mais adiante, novas turbulências podem produzir ondas de "queremismo" por esse tipo de ator. Um canto aí, sim, irresistível seja para Ulisses tanto quanto para aqueles que o rodeiam.
E o que dirá o autor sobre o artigo de hoje? Qualquer coisa: "foi a verdade do momento. Mas, se é para o bem de todos…" A prudência às vezes pede um tempo, mas a história não para no porto.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Sobre o Autor
Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".
Sobre o Blog
Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.