A terceira onda
Carlos Melo
26/10/2017 15h14
Passado o ciclo de denúncias contra Michel Temer — supondo que o Ministério Público pare por aí — a questão que se coloca agora não é como "virar a página", mas como retirar o Brasil do caderno de ocorrências policiais e do buraco político em que se encontra. Compreender como esse processo de desventuras em série — que se dá, pelo menos, desde 2013 — se conformou na política nacional; o que gerou de novo, o que deve ser descartado e o que pode ser aproveitado é tarefa fundamental. Até para que se decida no que se deve ou não apostar.
Difícil responder, sem, é claro, emitir juízos e preferências aqui e acolá. E, é óbvio, qualquer opinião desta natureza se baseia apenas na intuição, num pessoal modo de interpretar a realidade e na insegurança inerente a qualquer opinião política: não há verdades, menos ainda, certezas. Tudo é mesmo a matreira desconfiança do caboclo a sofismar e suas apostas, ao final. Vamos à leitura do processo:
Já em 2013, quem acompanhava a política há algum tempo sabia que o sistema emborcava. Os "anos de ouro" de Lula e Dilma foram um período em que não se fez o necessário para renovação de um sistema que — bastava olhos de ver — caducara. Ao contrário, os governos do PT negligenciaram evidentes problemas nesse campo. Deslumbrados com o noviciado do poder, encantaram-se de si mesmos e do sucesso vago, frouxo e frágil na economia. Assim, compuseram, na política, com o que estava podre e se contaminaram com ele. Ilusória a euforia; o bom momento foi péssimo conselheiro.
Com o tempo perdido, o relógio da política girava acelerado na direção do colapso: em meados daquele ano, as ruas foram ocupadas para demonstrar o mal-estar latente. Por conta de R$ 0,30, mas não só, um barril de críticas e ressentimentos explodiu. A negligência, esta mais geral, não apenas do PT, com a qualidade dos serviços públicos também gritou nas avenidas: no geral, o Brasil fazia estádios "padrão" FIFA, mas tratava displicentemente, em todos os níveis da Federação, a educação, a saúde e a segurança públicas.
Por fim, a repressão da polícia paulista às manifestações só fez piorar a situação e elevar o número de pessoas dispostas a se mobilizar, agora, "apenas" pelo sagrado direito de protestar.
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De fato, 2013 liberou energias, movimentos e taras guardadas; sinalizou avanços, mas constituiu também retrocessos. O fato é que a sociedade real despertara do sonho de marketing do Cristo voador, da capa da The Economist. Dividida, fragmentada em visões diferentes e opostas de mundo, a sociedade passou a se olhar no espelho e não gostar de seu reflexo contraditório e inacabado.
Não, o Brasil não era, não senhor, um paraíso de esquerda; havia uma miríade de agrupamentos liberais, conservadores e autoritários, muito mais do que poderia supor uma vã estética popular/populista. Eleições à esquerda, com consenso econômico e pauta progressista, como a de 2002, entre Lula, Serra, Ciro e Garotinho eram evidentemente artificiais. Expressavam condicionantes momentâneos, não determinantes estruturais.
O fato é que dali em diante surgiram grupos formados por gente jovem, até ali ausente do palco político. Uns, em busca da ampliação de liberdades, outros corporativistas; também havia os truculentos e autoritários, assim como anarquistas. Uma miríade de grupos e sentimentos que, gostem ou não, representava a pluralidade e o conflito da sociedade real.
Com o impulso das redes sociais — um fenômeno paralelo e, no entanto, avassalador — o pacto social explodiu. O país caminhou para a radicalização e a polarização obstruiu o diálogo. Frágil, com enorme déficit de credibilidade e incapaz de representar, o sistema político, ao invés de conduzir o processo, foi arrastado por ele.
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Mas, o enredo da história guarda ironias dialéticas: ao mesmo tempo, vários desses novos movimentos se deixaram cooptar por personagens políticos e forças partidárias. O processo de mudança ficou travado, até que numa segunda onda desembocasse no impeachment de Dilma Rousseff. Mas, nem por isso avançou no caminho mais desafiador da remoção dos escombros do sistema político arcaico, que tem sobrevivido a quase tudo no país. E, ao invés de significar o novo, parte da explosão iniciada em 2013 tem servido de escudo e biombo para o velho.
Essa constatação, exasperante para muitos, gera ambiguidade: uns se decepcionam sem esperança e simplesmente abandonam a arena: "política é o fim"; outros olham apenas para a economia e se dão por momentaneamente satisfeitos. Já há outros que, no entanto, insistem e reafirmam a necessidade de superar o caos e saltar o abismo.
Jovens insatisfeitos com as condições gerais do país ainda buscam a transformação do sistema e a superação do atraso. Não aderiram ao governo Temer, nem atribuem importância absoluta à economia; não buscam no passado resposta ao medo que possuem do futuro. Entendem somente que, sem melhorias na política, tudo o mais será como baldear o oceano com as mãos.
Críticos, mas nem por isso radicalizados; bem formados, mas tampouco dogmáticos resolveram se articular em novos movimentos sociais; pode-se dizer que são a terceira onda do processo despertado em 2013. Já não mais ingênuos para acreditar que tudo se resolva com a troca de personagens, quase sempre tão iguais; tampouco sucumbem ao ceticismo — ainda enxergam a mudança como uma possibilidade.
Menos preocupados com seus ganhos, em si, do que com a transformação mais ampla do sistema político, estão dispostos a buscar, por dentro, as mudanças a que são impelidos pela pressão de fora. Pretendem disputar eleições, eleger uma nova geração de parlamentares, mudar a mentalidade. Constituir uma nova elite política. Utopia é o lugar onde se quer chegar.
Um desses agrupamentos, mas não o único, é o Movimento Agora! Conheço, de estrada, vários de seus membros. São militantes da política e não de partidos, são progressistas nos costumes e políticas sociais; liberais tanto quanto possível em economia, sem se perderem no dogmatismo. São idealistas, mas também pragmáticos. Terão sucesso na start-up política que empreendem? Somente o tempo e os resultados dirão. Mas, partem de princípios que merecem respeito, pelo menos a atenção.
Recentemente, foram, porém, envolvidos numa polêmica em torno do nome do apresentador de TV, Luciano Huck. Cogitado e incentivado a disputar a eleição presidencial ano que vem, Huck, em paralelo, anunciou sua adesão ao Agora! e foi o suficiente para que se insinuasse um Movimento que se sujeitara a ser aparelhado do astro da Globo. Polêmica besta porque nada é tão simples assim.
Conversei com o pessoal do Agora! O que ouvi me pareceu de bom senso: que motivos teriam para fechar as portas a Luciano Huck? O apresentador, assim como muitos outros famosos, se aproximou das ideias do agrupamento; aderiu a um processo que precede ao balão de ensaio em torno de seu nome como candidato presidencial. É jovem, possui energia, tem capacidade de comunicação e é articulado; aderiu — não foi "aderido". Por quais motivos haveria de ser vetado?
Será candidato a presidente no ano que vem? Quem saberá responder, ao certo? Talvez nem ele mesmo. Intenção não paga o pão. E, se vier a ser, garantem os membros do Agora!, esta é uma questão de Luciano Huck, não do movimento, que não quer se confundir com nenhum partido em particular e nem com projeto presidencial em especial. O Agora!, dizem, não tem dono: possui membros e colaboradores, é uma ideia e uma intenção prática. Não é um feudo.
Mais uma vez: somente o tempo e os resultados dirão se o agrupamento pode vir a ser isso tudo mesmo. O que parece descabido é que movimentos desse tipo, como uma terceira onda de 2013, sejam imediatamente desqualificados pelo ceticismo e pela a antipolítica. É necessário que se lhes dê voz e espaço para que digam e demonstrem ao que vieram. Estão seriamente preocupados em expandir limites; almejam crescer a partir da diversidade: social, econômica, étnica, de gênero. Por que não?
Um país que ainda concede atenção a personagens e partidos carcomidos pelo tempo, superados pela história, não deveria — e nem pode — virar as costas a qualquer possibilidade de inovação, de renovação, de transformação que surja de suas contradições. É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão. No breu em que nos encontramos, qualquer-qualquer centelha já pode ser um alento de luz.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Sobre o Autor
Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".
Sobre o Blog
Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.