Considerações sobre as metades do copo
Carlos Melo
22/09/2017 08h59
É no olhar dos homens que o copo, meio cheio e meio vazio, define sua vocação: para uns, está satisfatoriamente ocupado; para outros, irremediavelmente deserto. A divergência reside naquilo que, pensam os homens, mais valeria destacar como fundamental. A metade cheia ou a metade vazia, por opostas, negam-se mutuamente. Resistem admitir, em resumo, que o copo é um todo, cuja soma das partes conta uma inteira verdade.
A ambiguidade do copo tem definido o debate nacional, repleto de rancor e vendeta; machucado por disputas e agressões de anos e anos de polarização eleitoral. Mais valeria que se discutisse se o que o copo possui é mesmo o que nos basta; ou se o que lhe falta está (ou não) naquilo que nos resta.
Mas só a polêmica importa: é chavão dizer que o país vive sua maior crise — embora seja verdade; é raso insistir que, mesmo assim, "a economia descolou da política…". O desafio reside, antes, em responder se a economia vai mesmo em frente, assim, sustentando-se em ambiente político tão frágil. E mais que isto, se ao final, resgatará políticas públicas e promoverá algum bem-estar social.
Nem se discute isto; num horizonte limitado, a vista não alcança o futuro. No peito, pulsa a intolerante parcialidade de pontos de vista. O país vive de paradoxos.
Apocalípticos, enfatizam a falta que há em quase tudo que existe no Brasil destes dias, lamentam o mal irremediável que a história recente causou; negam que já não era sem tempo de que o sistema, estruturalmente doente, entrasse mesmo em colapso. Vive em agonia e sua morte será muito bem-vinda.
Integrados ao sistema, por sua vez, relativizam a falta; pintam com cores vivas os pálidos sinais de melhora do doente que apenas respira. Até no governo Temer encontram ilhoses e lantejoulas, chamando de belos bordados o um bololô de nós embaraçados que o amarra — não é um governo que se governa; a tortuosa sorte o domina. Ressuscitar a grande Política é um imperativo que se ignora.
De verdadeiro nisso tudo, o fato de que não nos sobram muitas verdades. A certeza é a maior falta e a volatilidade o principal conteúdo do copo nacional. Já se disse que a instabilidade é a nova estabilidade; que a incerteza é a coisa mais certa. Destruição criativa; intensa criatividade deveras destrutiva. Atribulado Mundo Novo.
A crise varre indivíduos e organizações viciados pelo tempo e costumes. É positivo. Mas ainda esconde seus destroços sob o tapete. Capenga e alquebrado, sistema político ultrapassado sobrevive. Incrível que haja quem se envaideça de sua resiliência. Um sistema político assim colocado torna-se o principal custo de transação para o país.
Sua substituição está contratada; é consistente, mas lenta e incremental. Aflitiva para a maioria dos viventes. Na transição, ideias moribundas transmutam-se em novos blá-blá-blás, sob medida para o oportunismo eleitoral. Renans e Jucás se debatem e se debruçam buscando sobrevida. Assim como está, o sistema morre, mas, antes, mata. Levará a democracia consigo?
Novos profetas pregam no Jordão das redes sociais: um liberalismo puro seria, no Brasil, coisa nova, sendo em todo mundo ideia-avó do velhote comunista. A liberdade total é a lei do hedonista; a desigualdade, principal lacuna nos andares vazios do museu de grandes novidades. Conciliar liberdade com desigualdade é fácil; difícil é converte-la em Justiça — mister da Política, sua arte e seu ofício.
No País, já bastaria como novo que se inventasse a "Republica"; enterrar o patrimonialismo, romper com o clientelismo, inaugurar o universalismo de direitos e procedimentos — algo tão simples quanto radicalmente democrático. Igualdade oportunidades, direitos sem privilégios; sem amigos, nem inimigos, nem querelas. Eis a nossa Revolução. Está em Sérgio Buarque, 1948.
Numa parte do copo, houve avanços evidentes; deu-se, assim, largos passos para frente. Na outra, a peemedebização da vida pública e o reacionarismo como modelo cultural foram, sim, pinotes para o retrocesso. Em tempos de pesadelo, um sonho basta: inaugurar a "República", utopia para alimentar o pleno e ocupar a falta. O desafio é fundir a esperança do cheio na desolação do vazio do copo.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Sobre o Autor
Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".
Sobre o Blog
Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.