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Rombo fiscal: alternativas são cada vez mais limitadas

Carlos Melo

17/08/2017 08h00

Joel Rodrigues/FramePhoto/Folhapress

A ação de um governo nunca é expressão da vontade dos governantes, sejam eles compenetrados estadistas ou patéticos populistas. Considerações que apontam para a "vontade política" como determinante são, quase sempre, expressão romântica de voluntarismo. Nenhum governo faz o que quer; na democracia, menos ainda. O "querer" importa, mas a obra será sempre coletiva, derivada de conflitos; o resumo do possível diante das circunstâncias.

Essa confusão é mais acentuada quando o próprio governo a alimenta. Claro que os governantes precisam gerar confiança, criar expectativas de realizações e vitórias. Mas, não podem exagerar porque frustrações geram reversões de expectativas e a dinâmica contrária na descrença. E tudo piora. Governantes que desprezam dificuldades e negligenciam a complexidade da política, o fazem por arrogância, ignorância ou má-fé.

De certo modo, isto o que tem acontecido com o governo Temer. Na ânsia de se livrar da teimosia de Dilma Rousseff e na euforia do impeachment, analistas políticos, o mercado financeiro e demais setores da economia assumiram, acriticamente, o autoengano de promessas sem lastro de realidade. Constata-se, agora, que a vida é mais dura que vontade vã dos discursos e dos quereres.

O processo é mais ou menos conhecido: para viabilizar o impeachment de Dilma — e viabilizar-se a partir dele — o PMDB e aliados fizeram crer que tudo transformariam porque o problema, afinal, era Dilma — o que apenas em parte é verdade. Supostas raposas, definiram-se "bons operadores" da baixa política que se pratica. E assim, tudo se resolveria, no Congresso Nacional com a aceleração do fisiologismo. A janela de oportunidade seria perfeita para resolver os problemas da economia.

Foi a fase dos compromissos retóricos com o ajuste fiscal e da grandiloquência reformista. Juras de amor sem conexão com a complexidade do sistema político nacional; omissão, provavelmente, deliberada de problemas estruturais: o presidencialismo de coalizão esgotado; sua imensa voracidade já não mais saciada pelos recursos escassos de um estado falido.

Foi a ilusão de que um presidente, por ser não candidato à reeleição, pudesse sozinho contornar os interesses do Congresso Nacional; esqueceu-se que 567 parlamentares (513 deputados e 54 senadores) são. Assombrada por temores eleitorais, em seu atavismo de sobreviventes, a maioria sabe que manter os mandatos é seu primeiro e principal desafio.

Manifestações de vontade não bastariam e nem bastam. Faltou acreditar na sociedade, antes de pactuar com o diabo: as necessárias reformas não têm suporte social, as pesquisas mostram; a sociedade atarantada, justificadamente, enxerga o sistema político como um corpo estranho, voltado para si. A credibilidade se perdeu. Morto de medo das urnas, o sistema é incapaz de conduzir processos políticos transformadores.

Não faltam ao governo apenas mais recursos e capacidade de cooptação: carece também de capacidade de comunicação, pedagogia de crise. Não aglutina forças nem dentro nem fora do parlamento; não sabe coordenar interesses legítimos. No mais, sem perspectiva de poder (e continuidade) mal consegue jogar os dados viciados que definiu como instrumento de formação de maioria.

Resta o forrobodó em torno de contas não fecham. O déficit, que era grande, agora transbordou: culpa de Dilma e de quem disse que tudo seria fácil. A área política prometeu e pode entregar; a econômica fica pendurada no pincel. Deputados, puxam-lhe a escada e afirmam que foi ela, a equipe econômica, quem errou. Incapaz de dramatizar o processo, o governo estreita o campo das alternativas: aumentar o déficit ou aumentar impostos?

Aumento de déficit implica em aumento da desconfiança dos agentes econômicos. Aumento de impostos multiplica a fúria da sociedade — e o temor dos parlamentares. Muito além do jardim, qual o nefelibata personagem de Peter Sellers, o presidente faz pronunciamentos como se ainda pudesse seduzir o mercado. Está ficando mais difícil convencer que política seja gesto de vontade.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

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Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.

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