O conflito sutilmente invade a Justiça
Carlos Melo
04/05/2017 08h22
Há dias, o rebuliço vem se dando, deixando disputas explícitas: primeiro os habeas corpus concedidos a alguns condenados, em primeira instância, pela Operação Lava Jato — José Dirceu e Eike Batista, entre eles. Agora, a decisão do ministro Edson Fachin de levar o mesmo pedido de Antônio Palocci à decisão do plenário do STF, saltando a Segunda Turma, que liberou Dirceu.
Houve também a decisão do plenário que permitiu que o governador mineiro, Fernando Pimentel (PT), seja processado diretamente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sem anuência da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Dadas as relações políticas entre Executivos e Legislativos estaduais, a decisão faz bastante sentido e o Judiciário parece agir dentro de suas prerrogativas ao adotá-la.
Todavia, mesmo aparentemente correta, trata-se de um encaminhamento político que ainda dará o que falar, uma vez que se estenda a todos os governadores do país. Existe uma penca deles hoje na berlinda, atordoados por delações e revelações da Operação Lava Jato. É claro que haverá conflito também aí.
Nada disso é ilegal, mas tampouco é tranquilo. O conflito parece ter escapado de sua arena tradicional, o parlamento e os partidos, para pousar sobre as togas de promotores e magistrados do país. Há tempos vem se deslocando, num embate mais ou menos sutil entre magistrados e destes com promotores, mas agora tudo indica que as disputas estão explícitas.
A decisão da Segunda Turma — no caso Dirceu — e a liminar concedida por Gilmar Mendes — no caso Eike — desagradaram a milhares, se não milhões, de pessoas, acionando a opinião pública, temerosa que a partir disto inviabilize-se a Operação Lava Jato. Como contraponto, promotores de Curitiba tentaram reagir por meio de entrevista coletiva na TV; também o juiz de primeira instância, do caso Batista, de um ponto de vista muito prático, buscou tonar nula a decisão do ministro do STF, ao arbitrar um valor aparentemente pouco exequível para a fiança do empresário.
Evidentemente, não é bom que isto ocorra, pois, levado ao extremo, perde-se a possibilidade de arbitragem — a decisão em "última instância", o poder que estabelece a ordem, moderando o conflito. Como mais ou menos disse o ministro Gilmar Mendes, "Supremo é supremo"; o complicado é que isto precise ser afirmado.
A questão deveria ser simples: o Supremo agiu dentro de suas prerrogativas ao decidir pela liberdade provisória; obedeceu ou não à lei? Se a resposta é positiva, isto de modo algum poderia prejudicar a Lava Jato, mesmo que contrarie o ímpeto de seus membros e simpatizantes; talvez até a corrija num ou noutro excesso. A lei é a lei que se tem, não há outra. E ninguém, por mais justo que supostamente seja, está acima dela.
Num ambiente menos poluído por desconfianças e disputas, ficaria claro que a Lava Jato pode muito, mas não pode tudo. Seu espaço de ação é institucionalmente limitado. A opinião pública conta, mas não resolve a equação por si. No limite, a autoridade suprema é, óbvio, do Supremo Tribunal Federal e isto bastaria.
Esqueçam-se os casos Dirceu e Eike — são figuras, no mínimo, controversas, até inadvertidamente, seus nomes contaminam a questão. O maior problema reside em outra esfera: o país confia ou não nas instituições possui? Elas são ou não críveis? A rigor, tanto as decisões da Segunda Turma e de Gilmar Mendes quanto as de Edson Fachin e do Plenário são absolutamente legítimas, embora se deem num evidente jogo de forças.
A Justiça tem suas normas e seus rigores, mas a hermenêutica será sempre tomada por valores e crenças; se não se aceita limites à autoridade e leis de abuso em instâncias menores, não se pode exigir o contrário para instâncias superiores. A interpretação será sempre política; às vezes haverá consenso, noutras haverá disputa. Importante é que não seja partidária.
O conflito pisou os tapetes dos tribunais, sutilmente sentou-se entre magistrados; pediu café e a palavra. Veio para ficar e, ao que parece, tão cedo não irá embora. Nem por sorte.
E assim o tempo caminha em seu ziguezaguear como o passo de bêbado, que cai, não cai; avança, recua, puxa, cede, retrocede. É o movimento da história: o conflito, nervo da política, se explicita, e traz consigo sua vertigem. A vida é isso: hoje se ganha; a manhã, se perde e, depois, ninguém sabe o que virá. Parece poesia de Carlos Drummond. A evidenciação do mal-estar não é, por si, condição para saná-lo; a tensão em que se vive atualmente não se abrandará enquanto arder a chama das disputas.
Sobre o Autor
Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".
Sobre o Blog
Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.