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As manifestações desenham um novo quadro político?

Carlos Melo

27/03/2017 08h57

O4 de dezembro comparado a 26 de março. A mobilização refluiu. Imagens: Jorge Araújo e Diego Padgurschi/Folhapress

A pequena adesão às manifestações deste domingo, promovidas contra o mundo político e em defesa da Operação Lava Jato, precisa ser analisada sem precipitação. Os efeitos do esvaziamento talvez sejam mais importantes que as causas, a começar pela frustração das mais elevadas expectativas de que pudessem vir a demarcar uma retomada ao ataque contra o processo, em curso, de conciliação de interesses das elites políticas.

Para compreender esses efeitos, neste momento, será mais proveitoso comparar a manifestação deste 26 de março com a mobilização do dia 15, quando foram as ruas os setores contrários às reformas fiscais propostas pelo governo Temer. E daí avaliar sua natureza e compreender que tipo de pressão será considerada por deputados e senadores.

O dia 26/03 buscou reunir os movimentos que deram ânimo ao impeachment de Dilma Rousseff; visando defender a Operação Lava Jato, tinha como objetivo acuar o sistema político que prepara uma grande pizza com os ingredientes dos escândalos em que seus membros estão envolvidos.

Não foi pensado contra o governo – o "Fora Temer" estava fora de seu escopo –, mas contra os políticos em geral; juntava uma ampla pauta: do apoio – às vezes, da tietagem — ao juiz Sérgio Moro ao repúdio à anistia do Caixa 2 e ao voto em lista. Contudo, a questão econômica passava ao largo; neste campo, não haveria maior contradição com a agenda governista; pelo contrário, até certa simpatia havia pelas medidas do ministro Henrique Meirelles.

Os tais movimentos sofreram, no entanto, sentidas deserções e daí o baque na mobilização. A começar pela Fiesp que, interessada em fechar o ciclo de crises econômica e política – além de encerrar a onda de denúncias que também envolve alguns de seus membros –, recolheu seus patos.

Também partidos, antes de oposição, hoje alinhados ao governo, pularam fora, é claro, por razões que a razão não desconhece: encerrar a sangria política em que se esvai algumas de suas lideranças. Acreditando numa capacidade de mobilização, talvez, superestimada, os organizadores do dia 26 se viram, assim, sós.

Além disso, se deparam com contradições internas: divergências de visão e encaminhamento político; contrariedades quanto ao apoio de personagens que desde o primeiro momento surfam politicamente na onda do questionamento. No mais, sobreveio o desencanto: o tesouro da limpeza política que buscavam na imaginária montanha moral parece ficar cada vez mais distante: foi-se Dilma, coloca-se nova leva de envolvidos; vai-se o PT, surgem o PMDB, o PSDB e seus aliados. O trabalho é de Sísifo.

Já o dia 15/03 foi organizado com outra pegada: em que pese ainda restar a narrativa do "golpe", sua preocupação é mais bem definida e sua causa, objetiva: trata-se de um movimento defensivo, antirreformista em relação à pauta fiscal proposta pelo governo federal; sua natureza, neste momento, é muito mais econômica que política. Organizado por partidos de esquerda e centrais sindicais, possuem os instrumentos e os recursos da militância tradicional; sua organicidade é maior. Representando interesses concretos de corporações sua capacidade de mobilização cresce significativamente. Muito menos que a continuidade da Operação Lava Jato, se preocupam com a defesa do que acreditam e dizem ser direitos do trabalhador.

O dia 15 foi, sim, contra o governo, mas, sobretudo, pelas divergências econômicas que estão sobre a mesa – as questões políticas tornaram-se assuntos de segunda ordem ou uma agenda tão paralela quanto dissimulada. Neste campo, um curioso alinhamento de interesses com o governo e seus aliados é tão plausível quanto irônico. A muitos interessa sufocar escândalos e denúncias, mitigando riscos que assombram quase todo o espectro partidário.

Ora, para um político médio da base governista a leitura da comparação dos dias 15 e 26 parece óbvia: a resistência maior está no campo das reformas econômicas, no âmbito daquilo que implica contrariar a atores reais com seus reais interesses, estes muito claros e concretos; com maior capacidade de mobilização. A oposição mais ferrenha das ruas não reside exatamente no questionamento às manipulações políticas, em que Brasília articula a defesa dos seus. Mas, na resistência às reformas.

Na lógica do sistema, estaria se delineando um novo quadro político? Difícil afirmar tão já. O fato é que há novos sinais que podem induzir ser tanto mais fácil quanto útil tourear a barafunda econômica do que a hecatombe política. Trocar reformas pelo cansaço ou pela condescendência política, pelo menos até 2018, pode parecer uma atraente – embora perigosa — compensação.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

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Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.

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