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O governo conseguirá aprovar as reformas?

Carlos Melo

01/03/2017 22h13

Navegar é preciso. Passada a dispersão do Carnaval, o país volta ao ambiente de sua "tempestade perfeita": a nefasta interação entre processos econômicos e políticos que, colapsados, se retroalimentam. O desafio é ultrapassar "a pinguela" do governo Temer; chegar à outra margem do rio, em 2018, com democracia e pelo menos alguma recuperação econômica.

A semana que passou foi marcada por pedras nesse caminho. Por exemplo, os afastamentos, por motivos de doença, de dois importantes ministros do presidente Michel Temer: José Serra e Eliseu Padilha chamaram atenção.

Há muita especulação em torno dos objetivos de ambos: afastaram-se por conta da saúde ou em virtude da Lava Jato? Objetivamente, ambos se submetem a tratamento médico. Não parece ser esta a questão e nem se deveria especular a respeito.

O fundamental a considerar é que, aos poucos, o presidente Temer vai perdendo seus principais colaboradores. Pela ordem: Romero Jucá, Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima e Eliseu Padilha — além de José Yunes e José Serra. Há outros na fila. É eloquente que tantos homens do presidente estejam arrolados com a Lava Jato.

Mas, ainda mais relevante é que haja alentada lista de agentes políticos até a medula comprometidos, cujos nomes devem vir à luz tão logo sejam levantados os sigilos das delações premiadas dos executivos do Grupo Odebrecht. O sistema político como um todo, salvo exceções, passa por momentos de angústia e aflição. Elementos, em si, concentradores da atenção que deveria estar em outro campo, o das reformas.

Tome-se como ponto de partida a Reforma da Previdência. Em situação de muito menor turbulência, reformas desse tipo são bastante complicadas: por afetarem expectativa de direitos e privilégios, ferem o status quo de setores mobilizados e com capacidade de pressão junto ao Congresso Nacional.

Logo, aprovar reformas desta natureza requer que o governo — qualquer governo – possua qualidades e instrumentos especiais:

  • A primeira é a credibilidade: não basta ter o apoio do establishment – o tempo do pacto das elites vai distante; é necessário gerar "ondas de comunicação" e disposição em toda a sociedade. Mobilizações de rua, em sentido contrário, abalam os políticos, que precisarão, não tardará, de votos. Dispensável voltar aos problemas do governo e do sistema político.
  • Liderança e capacidade de comunicação: no presidencialismo, este papel é exclusivo do presidente da República, sua credibilidade e seu carisma; a capacidade de persuadir no interior do sistema político, mas também fora dele; a possibilidade de conter os adversários, de esvaziar mobilizações contrárias. A popularidade externa garante ao presidente importante elemento de pressão junto ao Parlamento. As ruas do país durante o Carnaval, talvez, tenham dando um inquietante alerta em direção oposta.
  • Articulação política: operadores capazes, exímios profissionais da política, seja por suas habilidades de comunicação e persuasão entre seus pares, seja pelo manejo de instrumentos políticos de poder – cargos e recursos, por exemplo — de que disponham para "convencer". Sem Geddel, sem Padilha, com Jucá alvejado, com a fila dos angustiados, Michel Temer pode estar ficando só. Questão a considerar.
  • Acordos e trocas; dar para receber. Os recursos fiscais são cada vez mais escassos; ainda assim, talvez a reforma valha a missa e oferta-los, ainda que não seja de bom tom, pode ser necessário. O problema é que apenas isto pode não bastar. Hoje, o sistema exige muito mais: proteção ou anistias, que o Poder Executivo já não é capaz de garantir – e se o fizer, comprometerá ainda mais a credibilidade.

Com isto, o governo Temer conseguirá aprovar as reformas? A resposta não pode ser conclusiva porque o jogo da política está sempre sendo jogado. Muito dele dependerá do Ministério Público e do Poder Judiciário, e em especial do STF. Lá também se joga.

Contudo, já não se trata mais de aprova-la ou não. É mesmo possível que o governo "aprove alguma coisa", uma reforma na margem. Qual reforma será, objetivamente, aprovada, eis a questão. Será o bastante ou o fantasma permanecerá para o próximo governo? E como ficarão os estados, onde, talvez, a questão da previdência seja ainda mais dramática? O símbolo, apenas, de uma "reforma aprovada" pode não bastar, por mais que governistas o alardeiem.

Se para tudo no Brasil, como se diz, "fica para depois do Carnaval", o fato é que o Carnaval já passou. Para católicos, a quaresma é o período de penitência, à espera da Páscoa. Para o Candomblé, é tempo em que os Orixás entram em guerra contra o mal, com objetivo de trazer para casa o pão de cada dia. O sistema político brasileiro estará entre a penitência e a guerra.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

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Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.

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