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O “escorregão” de Padilha é pedagógico, mas revela grave erro político

Carlos Melo

15/02/2017 00h27

Pela boca de Riobaldo – seu personagem em Grande Sertão Veredas – Guimarães Rosa sentenciou que "viver é muito perigoso". Eliseu Padilha, ministro-chefe da Casa Civil, sente na pele que viver no mundo moderno digital, dos smartphones, é muito mais perigoso ainda. Pego de calça curta por uma gravação inesperada, o ministro demonstrou, em toda sua crueza, a natureza e o funcionamento do sistema político no Brasil. É claro, arca com enorme desgaste. Afinal, o rosto revelado por sua fala é justamente a feição que o governo Temer procura esconder.

Mas, Padilha foi didático: o sistema é primordialmente fisiológico. Há pouquíssimo espaço para questões ideológicas, para "notáveis" em áreas técnicas ou considerações programáticas. Parlamentares, mais que tudo, querem cargos, recursos e, a depender das circunstâncias, esquemas que contribuam para suas reeleições. Governos são pragmáticos e guardam pouco espaço para considerações e princípios de purismo ético. Isto é coisa para a oposição.

Pedro Ladeira/ Folhapress 9. Fev. 2017

Assim, agem e reagem conforme objetivos delineados pelas circunstâncias e pelas pressões que administram. Salvo raríssimas exceções, esta é a lógica: se as circunstâncias econômicas exigem reformas, busca-se os quadros técnicos para isto; monta-se uma agenda, apresentando-a ao Congresso em busca de sua legitimação política e institucional. Quanto custa os votos de uma bancada? Um ministério! Paga-se. Uma bancada maior e mais fiel, compreende ministérios mais robustos, mais recursos.

Se os grupos de pressão, com expressão na sociedade e no Congresso, têm interesses contrariados, negocia-se. Se a pressão social se choca com o governo e a lógica da máquina e do fisiologismo, negocia-se; cede-se se for o caso. Implicando em custos maiores que os ganhos de fazer parte do governo, entrega-se os cargos, abandona-se o governo; busca-se alternativa de poder. Cálculo racional, político e eleitoral. Ilusões românticas remetem a um mundo lírico e ingênuo que se perdeu no tempo.

Há anos procuro explicar isto em sala de aula — gastei muita saliva e tinta; ultimamente, muitos bites em torno desse assunto –, o funcionamento do sistema tem lógica própria, reage a estímulos, é pragmático. Como dizem os economistas, a "utilidade" desse tipo de político não é o bem-estar, mas a manutenção do poder. Se seus interesses coincidirem com os interesses da maioria da população, muito que bem. Mesmo com Lula e, depois com Dilma, foi assim.

A fala de Padilha tem, portanto, enorme valor pedagógico. Mas, mesmo na suposta inviolabilidade de uma sala fechada, ela deve ser relativizada: o ministro afirma que "em toda a democracia é assim"; nem todas. Em regimes onde o número de cargos à disposição do balcão é menor, forçosamente, a negociação, no nível demonstrado por Padilha, também é diferente.

Além disso, governantes com menor disposição fisiológica estabelecem saudáveis quedas-de-braço com o Legislativo; cedem ao fisiologismo com menos facilidade; impões parâmetros distintos de convivência –  e, sim, às vezes, pagam altos preços por isso, mas tendem a conduzir negociações mais transparentes e, portanto, mais facilmente fiscalizadas pela sociedade. Quando cedem, o fazem no limite, apenas no limite.. De certo modo, o parlamentar fisiológico fica mais exposto. Equiparar casos como o de Abrahan Lincoln ou de Lyndon B. Johnson — cujas experiências foram retratadas recentemente pelo cinema – ao quadro pintado por Eliseu Padilha é exemplo de desinformação ou má-fé.

No mais, governantes experientes sabem que, como tudo na vida, mesmo os recursos do Estado têm fim. Um dia, ficam escassos — seja pela crise, resultado do fim dos ciclos econômicos, seja em virtude da voracidade fisiológica, sem recato e sem freios — e o resultado é o colapso de um sistema cujo vício já não permite outro tipo de racionalidade e comportamento.

Isto ocorreu com o PT: ao final do terceiro mandato do partido, nada mais havia a dar; seu governo, capitulando a essa lógica, desprezou a voracidade – do próprio partido, inclusive. O fato é que 39 ministérios já não bastaram ao mesmo tempo em que a crise fiscal caiu feito um viaduto… A história é conhecida: com a elevação de Eduardo Cunha – primus inter pares do fisiologismo — e do Centrão ao poder, o segundo mandato de Dilma Rousseff não chegou ao fim.

Padilha jacta-se: "88% de apoio… nem Vargas, nem Juscelino, nem Fernando Henrique, nem Lula conseguiram isto". Chama a isto de "capacidade política do presidente Temer". Com efeito, tendo nas mãos o espólio dos cargos do PT — desalojado após o impeachment – Temer os redistribuiu e deu um reloading no sistema. Aderiu ao fisiologismo, que aliás sempre morou no DNA do PMDB, e recebeu, então, carradas de adesões. Não há surpresas nisso.

O sucesso de Temer – "88% de apoio", segundo Padilha – pode não ser exatamente um mérito. No médio e longo prazos, pode mesmo se voltar contra ele. Mais prudente seria não apostar apenas nisso —  transformador mesmo seria ousar outra relação. A distopia nacional, no entanto, não comporta tanta ilusão. Melhor voltar a Riobaldo: "…sertão que se alteia e se abaixa… O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra". Pego pelo rabo da palavra, o "escorregão" de Padilha é tão pedagógico quanto revela um grave erro político.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

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Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.

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