A liderança de Cármen Lúcia
A expectativa destes dias gira toda em torno do destino que será dado ao presidente Lula. Como se sabe, o ex-presidente depende de decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito do Habeas Corpus que pede a suspensão de sua prisão. O caso vem despertando conflitos sérios, nas ruas e no Tribunal. Muito para além de Lula, ganhou contornos mais amplos: a interpretação da Constituição Federal, o sentido da Justiça e o direito do cidadão.
Em seu do artigo 5, a Carta afirma que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…". Todavia, o inciso LVII do mesmo artigo alerta: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". O tribunal teria se manifestado anteriormente sobre o assunto, mas ao que se percebe não de forma definitiva; pelo menos, conclusiva. Existem ainda brechas e os ministros têm divergido sobre o tema.
Sem ser jurista ou versado nos "data vênias" dos tribunais, não arriscaria, eu, interpretar e resolver controvérsia em que doutos magistrados divergem sem encontrar o mínimo consenso. No entanto, a questão específica de Lula parece ter-se enredado por caminho em que não haverá solução boa, seja o ex-presidente preso, seja mantido em liberdade. Independente da definição dos ministros do STF, o assunto degringolou para a o campo da desrazão política.
Houve motivos para isso, erros de condução do processo. A presidente do Tribunal, que no passado fora condescendente com Renan Calheiros — então presidente do Senado, Renan deu-se ao direito de não cumprir determinação de ministro do Supremo e Cármen Lúcia, entre atônita e condescendente, conciliou —, iniciou o ano como que procurando se corrigir.
Escorando-se na platitude de que ninguém está acima da lei — como é evidente —, a ministra resolveu endurecer no caso do ex-presidente que, previsivelmente, recorreria às condenações de primeira e segunda instância. Podia até estar com a razão. O fato é que chamou para si toda a responsabilidade do ato, não considerando o contraditório no seio do tribunal, impondo aos colegas a delicada autoridade, apenas transitória, que possui como presidente do STF.
Carmen assumiu riscos ao, praticamente sozinha, tentar conter a pressão para a qual, talvez, lhe faltasse força para resistir. Ora, por que não julgar, no mérito, o artigo constitucional, dando-lhe interpretação definitiva quando havia clamor para isto no próprio Tribunal? Para evitar a revisão, digamos assim, de uma decisão de resultado 6×5; para não favorecer Lula ou para prejudicar o ex-presidente? Caberia a um único membro do Supremo tamanha responsabilidade?
Ao leigo que se vê na enrascada de emitir opinião sobre o Direito ficam mais evidentes os aspectos políticos do que jurídicos. Ao que parece, Cármen Lúcia perdeu o ponto de equilíbrio entre as atribuições que tem como gestora de um colegiado de iguais e as prerrogativas da presidência de um poder, cuja função não é ordenar e se fazer obedecer pelos demais ministros, mas tão somente coordenar.
Ademais, se seu objetivo era proteger a imagem do Supremo em questão tão delicada do ponto de vista político, este objetivo deveria ser compartilhado e estar coordenado com seus colegas.
Ao contrário do Poder Executivo em que o presidente da República nomeia e demite ministros, assumindo plenas autoridade e responsabilidade, no Judiciário, o presidente transitório não tem esse atributo. Os ministros do tribunal não são seus auxiliares, são seus pares. Se vier a influenciá-los será pelo fascínio, respeito jurídico e moral, base da capacidade de articular e persuadir. A mão-de-ferro dessa presidência deve ser usada para fora, não para dentro.
Internamente, o clima que já não era bom degringolou de vez. Temperamentos pessoais e divergências de natureza tanto jurídica quanto política — alguns com claro teor partidário — afloraram. Buscou-se a interferência do decano, ministro Celso de Mello, como forma de conciliação das divergências procedimentais, soou a intervenção sobre o comando de Cármen Lúcia. Para preservá-la, nem isto foi possível. O ambiente, agora, é péssimo.
No caso posto agora sobre a mesa, a questão do ex-presidente Lula, não haverá mais espaço para decisão boa. Qualquer que seja, haverá custos políticos, ainda que por uma mágica qualquer possa se chegar a definições jurídicas. Favorável ao réu, a credibilidade do Tribunal será questionada, politicamente, nas ruas. Desfavorável, ficará no ar se a decisão não foi sob encomenda.
Melhor teria sido discutir a tese. Através das ADCs — Ações Declaratórias de Constitucionalidade — seria retomada a questão pelo mérito e não pelo caso e ator envolvido. A questão de Lula estaria submetida a um entendimento mais amplo e ficaria, portanto, protegida de críticas e suspeitas pessoalidade e oportunismo. Qualquer que fosse a decisão. E assim, se tem ônus e bônus de ter-se feito a coisa do modo correto.
Mas, a condução da presidente do STF sobre o processo parece ter guiado a todos pelo caminho mais perigoso: não julgar a tese, para não rever o posicionamento; de modo que a revisão viesse a favorecer o ator em questão, Lula. Será que favoreceria mesmo, fosse encaminhada de forma mais técnica e menos emocional? Difícil ao leigo afirmar. O certo é que se trata de uma estratégia arriscada.
Presidir um poder — mais que isso, um poder coletivo — como o Superior Tribunal Federal não é tarefa, não é trabalho, não é regalia e menos ainda privilégio. Trata-se de desafio possível para poucos. Em tempos recentes, talvez, apenas Carlos Ayres Brito, dada sua imparcialidade, personalidade apaziguadora e voltada ao diálogo — além de saber jurídico —, tenha conseguido. Não por coincidência, o ex-ministro é também poeta. A liderança é uma arte.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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