Regras de ouro
Com justificados cuidados com a qualidade do ambiente macroeconômico, a chamada "regra de ouro" consiste num instrumento que impede o governo federal de fazer mal a si mesmo, a seu sucessor e ao país, proibindo-o de emitir dívidas em montantes superiores aos investimentos. O objetivo é dar travas à natural "bondade com o dinheiro dos outros", ao irresponsável populismo fiscal, com elevação de despesas correntes que os governantes adoram.
Esse tipo de mecanismo é simples e racional e, bem ou mal, expressa segurança indicando que, por pior que seja o governo, por mais perdulário, sua ação deletéria ficará sob limites mínimos, forçando-o à economia e ao ajuste: governar significa dirigir com cuidado e zelo. Quando não o fizer, e a sociedade assim permitir, se verá obrigado a elevar impostos tão logo cessem aumentos de arrecadação — ou quando as despesas crescerem em ritmo maior que a arrecadação.
Trata-se, antes de tudo, de uma regra de bom senso; de um ponto de vista objetivo, ninguém pode ser contra: a administração pública tem obrigação de se pautar, de fato, pelo comedimento e pela responsabilidade fiscal. Então, é uma prática justa e respeitosa com o dinheiro público; de certo modo, um procedimento óbvio e banal que, no entanto, no Brasil, precisou constar da Constituição.
Impedido — ou incapaz, não importa — de fazer sua parte no controle dos gastos, é exatamente isto o que o governo do presidente Michel Temer pretende mudar.
Não custa lembrar que foi Michel Temer quem, ao assumir o lugar de Dilma Rousseff, concedeu aumentos ao funcionalismo; foi o presidente quem aceitou renegociações de dívidas (REFIS para todos os gostos), liberou emendas a granel e no atacado para manter o mandato; concedeu privilégios a bancadas setoriais, capitulou diante do interesse de estados e municípios, evitou o quanto pôde enfrentar corporações na questão previdenciária — o faz somente agora, de modo oblíquo e desesperado, quando já parece tarde.
Foi Temer quem, ao contrário das expectativas de sua equipe econômica, se acomodou às pressões do Legislativo, mesmo antes do Joesley Day. Foi a área política de seu Governo — fisiológica, assustada e fraca — que desconstruiu, aos poucos e sistematicamente, as regras e os cuidados fiscais que ofereciam como alternativa à Dilma, derretendo, assim, o ouro da credibilidade prometida.
Isto tudo posto sobre a mesa, é claro que que a eliminação da "regra de ouro" acaba por ser natural, caminho previsível diante de trajetória errante. Não traz surpresas.
Contudo, implicará em sobressaltos na economia; afinal, quem pode dar cavalos-de-pau desse tipo, pode muito bem ultrapassar outros limites. Mudanças assim, elevam a insegurança em relação às regras, às instituições e à credibilidade dos atores, tornando tudo muito mais instável, por incerto e inseguro.
Quem, num ambiente destes, comprometeria recursos desconfiando que tudo pode, de repente, mudar ao sabor das conveniências políticas, onde governos não ajustam às regras ou, antes, conciliam interesses com corporações e as alteram?
Quadro como este só faz sentido mesmo no campo da política brasileira, pois sua regra de ouro é bem outra. Para a maioria dos políticos, manter o poder e, se possível, ampliá-lo é, este sim, o fundamento básico que de qualquer cartilha. Tanto mais quando — e este é o caso — a situação implica, acima de tudo, salvar a própria pele, preservar o pescoço, escapando de processos na Justiça e, até, da possível cana dura.
Dizem que os cães lambem a própria virilha pelo mais básico e elementar princípio da anatomia: eles o fazem simplesmente porque podem, porque é possível. De modo que fazer ou não, obedecer ou não, em política, não depende apenas de regras ou critérios abstratos de bom senso; dependem, antes, de poder ou não poder. E Michel Temer, ao contrário de sua antecessora eleita, pode.
Possui condições mais favoráveis para desviar-se de qualquer boa prática definida pela lógica econômica: o mercado financeiro lhe é mais condescendente, a ortodoxia econômica mais amigável e tolerante, os tribunais menos rigorosos, o Parlamento mais aberto à "negociação", a sociedade mais apática. Tudo dá ao governo Temer a elasticidade dos cães, mencionada no exemplo acima. Faz porque pode.
Somente os custos de reputação de sua equipe econômica poderão conter esse processo. Fora disto, estaremos no campo do "Poder" — na língua portuguesa, verbo e substantivo. O Poder, a dor e delícia da política; é eloquente, fala e cala por si. Interessante constatar como o governo Temer é, paradoxalmente, fraco e poderoso. Fraco, por sua fragilidade intrínseca, sua impopularidade explícita; poderoso por conta da condescendência de atores econômicos; da permissividade que lhe é garantida pela perplexidade da crise. Que mais dizer?
Nada mais. "Biquínis e mensagens devem ser curtos para aguçar o interesse e longos o suficiente para cobrir o objeto" (Carlos Heitor Cony). É isso aí: o que não está à mostra fica na imaginação.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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