Entre o bico e a cauda: o rompimento da unidade tucana
Localizada entre a cauda e o bico, a unidade dos tucanos se fez, ao longo dos anos, de ambiguidades e tolerâncias. Pariu a blague do muro: de cima dele, o partido ficava estrategicamente aquém dos conflitos. Na impossibilidade de conciliação, a inércia definia o movimento. A ruptura é sua antítese.
Distinguiu-se da algazarra de vozes e tendências petista por meio da ação de um cardinalato capaz de domar a ansiedade das bases. Em concílios, selou-se pactos pelo alto, evitando disputas. Fez-se, assim, seu jeito de ser. Hoje, contudo, a unidade do PSDB está por um fio.
Os interesses de Aécio Neves e seus camaradas no governo não são mais compatíveis com a parcela que se preocupa em prestar contas à sociedade. Estes não mais admitem a permanência do presidente da legenda, a índole do governo do qual participam e as reiteradas concessões ao fisiologismo em nome da salvação do presidente da República. A peemedebização, como método e saída de impasses, é-lhes inaceitável.
No PMDB, oblitera-se o conflito sem preocupação em ser partido, bastando ser federação de interesses; há plena liberdade: ninguém repreende nem é repreendido; não há conexão entre estados e destes com o Diretório Nacional. A fragmentação interna é estrutural, sistemática e consentida. Já nesta parcela do PSDB, há escrúpulos em retornar, filhos pródigos, à casa paterna do quercismo.
Não se trata de purismo, mas, para os genericamente chamados "cabeças pretas" — o termo é injusto e impreciso, há jovens e grisalhos nos dois campos —, conciliação tem limites; sabem que, dado o perfil de suas bases, nunca haverá a imunidade existente no PMDB. O peso da reputação e a observação, sim, de alguns princípios pesam muito mais e angustiam muito mais num partido com características de setores médios e urbanos, como é o PSDB.
De modo que o PSDB está dividido como nunca em sua história. E não há goma que cole o que hoje representam internamente Aécio Neves e Tasso Jereissatti.
O grupo do senador mineiro articula os que pelejam pela própria pele, quadros que se integraram de corpo e alma ao governo Temer. Náufragos de várias embarcações se apegando a um só salva-vidas: a esperança de a economia sair do buraco e sepultar a Lava Jato, a crise política, o desajuste estrutural do sistema com a sociedade. Vislumbram um candidato, em 2018, para restartar o sistema e reiniciar o processo com a mesma mentalidade, métodos e personagens.
Já o grupo do senador cearense reúne os que não acreditam em conciliação dessa natureza e nem admitem cortar o próprio pescoço para salvar a pele de Aécio Neves. Militantes e parlamentares os quais avaliam que as alternativas do grupo contrário os levarão à destruição, com o desgaste ético e o desastre eleitoral.
Há um abismo de valores, incompatibilidade de práticas e, claro, uma voraz disputa entre ambos.
Para o primeiro, fazer Marconi Perillo seu próximo presidente significa continuar no controle da legenda, alienando-a ao PMDB e à maquina do governo federal. Com isso, se poderá definir candidato a presidência da República que, uma vez eleito, garanta a continuidade do poder nos mesmos moldes de hoje.
Nesse quadro, candidato adequado, de bom grado, seria João Dória, hoje em sintonia total com o governo e com Michel Temer. E de fato, seria uma janela de oportunidade para o prefeito esta onde poderá contar com a capilaridade territorial e o tempo de TV do PMDB somado ao PSDB, o apoio da máquina federal e o discurso de que se está "recuperando o Brasil".
Já o grupo tassista entende que uma estratégia com esse teor o levará ao isolamento em relação à base e o arrastará ao precipício, destruindo reputações e mandatos. Não atribuem as dificuldades de Michel Temer a conspirações, ciladas ou golpes da oposição ou do MPF. Mas a vícios do sistema e a repugnância popular à corrupção, à mentalidade e aos conhecidos métodos fisiológicos do governo.
Para recuperar a credibilidade abalada, esse grupo quer Jereissatti presidente da legenda, vinculando-o também aos esforços para superação da crise e pela mudança das práticas políticas. Nessa lógica, buscará candidato presidencial prudentemente distante do governo, higienicamente apartado do PMDB e das revelações da Lava Jato. A incompatibilidade é enorme.
Entre os dois grupos, oscilam importantes setores e personagens partidários, divididos entre o que ganhar e perder com uma ou outra opção. Política é mesmo "cálculo": Geraldo Alckmin, por exemplo, ainda avalia a força interna de cada lado, como também o potencial eleitoral de suas opções. Discretamente, sua bancada na Câmara vota pelo afastamento de Michel Temer; mas, ainda assim, o governador tem sido ambíguo nas declarações sobre o governo e na sua visão do conflito interno.
Por outras razões, talvez acreditando pairar sobre contradições, está o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. FHC não tem máquina, mas é evidentemente o maior formador de opinião para fora da burocracia partidária. Sua ligação com Tasso é histórica, mas, sua opinião a respeito do governo e de Aécio tem sido guardada pelo silêncio. Claro que outras relações políticas e pessoais também pesam. Provavelmente, só a pressão o fará se posicionar.
O controle do PSDB se definirá na disposição e posicionamento desse grupo intermediário. Alckmin e FHC são, hoje, campos em disputa; pela força institucional que encerram e pelos ciclos que influenciam, podem persuadir parcelas da base e do establishment partidário; despertar (ou não) o debate; influir no jogo. O certo é que será dificílimo operar qualquer neutralidade ou conciliação duradoura e eficaz. Já há uma lista de deputados inclinados a trocar de partido.
É improvável que, qualquer que seja, o vencedor do conflito leve tudo. Pela primeira vez, a tensão interna pode escapar ao controle dos cardeais — até porque a briga se dá exatamente entre cardeais.
O ponto de equilíbrio que demarcou a história tucana, conciliando cauda e bico, pode se romper. E as consequências disto tendem a ser muito mais amplas e afetar outras forças, provocar realinhamentos políticos e mesmo um reordenamento partidário em todo o país — em 2018 e nos anos seguintes. Já não seria sem tempo.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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