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Blog do Carlos Melo

A "Questão Lula" e seu inevitável fantasma

Carlos Melo

22/01/2018 15h36

Douglas Magno/AFP

Pode-se gostar ou não do ex-presidente, mas é inegável que Luiz Inácio Lula da Silva é uma persona política com enorme relevância para a história do país; para o bem ou para o mal; para o bem e para o mal, não importa. Lula e um personagem complexo que comporta características que ao mesmo tempo se negam e se complementam. Como toda grande biografia, possui virtudes e defeitos que despertam sentimentos contraditórios.

Como objeto de análise, é fascinante buscar compreender seu alcance na cultura nacional: exemplo acabado do que Sérgio Buarque de Holanda chamou de "homem cordial", é todo emoção: enternecimento e fúria, amor e ódio, sentimentos opostos que também vai despertando em diferentes segmentos da sociedade.

Por carregar uma série de símbolos, torna-se uma grande ambiguidade. No final das contas, será mesmo aquilo que seu interlocutor quiser. Depende, antes, dos sentimentos e valores de quem o olha.

Falar ou escrever a seu respeito desperta paixões, a favor e contra. Patrulhas ideológicas que emergem de suas escuridões a cobrar do analista uma posição: inocente ou culpado; herói ou vilão? Mas, julgá-lo não me compete; esse papel cabe aos juízes. Julgar os juízes, bem, isso fica para os especialistas da área jurídica. E mesmo entre eles há grande discrepância.

Cumpre, porém, compreender seu papel na arena política, sua racionalidade e os efeitos de sua ação. Apenas isso. Assim, o que se pode dizer é que qualquer que seja o resultado do julgamento no TRF de Porto Alegre, depois de amanhã, a centralidade e a tensão do tema "Lula" serão permanentes, dali em diante. Mesmo que o Tribunal encerre o assunto jurídico, o assunto político não se encerra.

Absolvido, Lula entrará para o jogo eleitoral com todos os direitos, empunhado o estandarte do injustiçado que exige desculpas; ficha limpa, será um candidato fortíssimo. Todavia, neste caso, a reação de setores sociais urbanos e contrários a ele e ao PT não será calma: haverá tendência ao repúdio e à repulsa ainda maior pelo sistema político e pelas instituições nacionais — ou o que se entender por isso.

Mas, e se Lula for condenado? Dependente do placar. Enquanto puder recorrer, o que é de seu direito, não se entregará; buscará mobilizar o país e o mundo em sua defesa e em seu favor. A questão residirá no maior ou menor sucesso dessa empreitada.

Caso o score dos juízes seja, ao final, de 2 a 1, os recursos se alongarão e, com isso, o ex-presidente, obedecidos os prazos regimentais e as regras atuais — e isto deve ser obedecido, é da democracia e dos direitos de todos de que se trata —, Lula estará no jogo eleitoral para se defender e até para postergar a pena, vencendo a eleição.

Já na hipótese de um 3 a 0, os recursos serão sumários e o deixarão de fora da eleição.  Da eleição, mas não do jogo.

Sua bandeira será, então, a vitimização. O PT, naturalmente, buscará transformá-lo num mártir — com exagero, vão compará-lo a Nelson Mandela. Os apelos de seu papel em relação à desigualdade e ao acesso dos mais pobres ao mercado de consumo serão constantes; as elites — com quem se compôs no passado — serão demonizadas. Radicais construirão trincheiras.  Uma atmosfera de classes de um bolchevismo tardio. Também é do jogo.

O que deve se considerar é que, mesmo não candidato, a "Questão Lula" tem potencial para se tornar a tônica da eleição, em detrimento de outras agendas importantes para o país.

Esta possibilidade é alta e consistente: o noticiário e a militância de esquerda tendem a acompanhá-la com obsessão; seus antagonistas, vigilantes, idem: elevarão a água da fervura. Candidatos do PT em todo país e quem quer que seja o substituto de Lula mais Ciro Gomes, Marina Silva, Guilherme Boulos, artistas e redes sociais… Todos reivindicarão para si a defesa e, claro, o patrimônio eleitoral de Lula.

Ao mesmo tempo, figuras como Michel Temer, Aécio Neves e todos os envolvidos com o foro especial da Lava Jato sentirão maior o calor do inferno que há meses já os cerca. A pressão por suas punições será enorme. Imagens de malas atulhadas de dólares e reais, assessores correndo pelas ruas, delatores de todo tipo… Nada disso será esquecido. Uma pergunta lógica e incômoda ficará no ar, na TV, no rádio, nas ruas: por que apenas Lula?

Nesse cenário, as urnas se fecharão, mas a ferida não. A condenação de Lula, com seu afastamento do processo ou sua prisão, martelará como ferro quente sobre a imagem do próximo presidente da República, toda hora lembrado que venceu porque o adversário não pode concorrer. E ele, vitorioso, não terá como provar o contrário.

Até para quem não gosta de Lula, não haverá felicidade total: sua eliminação ou prisão deixarão marcas em todos, seja como temor, ressentimento ou remorso. Como diz a canção, "a falsa euforia de um gol anulado". A "Questão Lula" permanecerá como um fantasma; como o armário que, mesmo depois de tanto tempo, ainda abriga as roupas de um casal que morreu de repente.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

 

Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.