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Blog do Carlos Melo

Como pôde o governo perder o controle da base, que um dia teve?

Carlos Melo

12/12/2017 23h41

Alan Santos/PR/Divulgação

Jornalista liga; quer compreender o que, para ele, é paradoxo: como pode o mesmo governo que, há um ano, colecionava vitórias no Congresso, ralar, agora, o couro para aprovar a reforma da Previdência Social. Como pôde perder o controle do processo e a tutela da própria base que despachou Dilma e o instalou no Planalto?

A política do Brasil não é nem mesmo para profissionais. Frequentemente, dá volta em torno do próprio eixo; sem voltar ao mesmo ponto, gira e evolui como espiral. Como disse Riobaldo, se vive "puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro, não fantaseia". Compreender — e explicar — esse processo é um pouco disso: desvendar sertões e se sujeitar às armadilhas do caminho.

Com efeito, os mais afoitos vislumbraram o sucesso inicial do governo, sem compreender, no entanto, a natureza e a fonte do triunfo momentâneo. O sistema se esgotou, travou, com Dilma; Temer deu um reloading (leia aqui), sem renovar as bases do pacto de governabilidade, o fisiologismo, que a dinâmica política transformou em hiperfisiologismo: a super e desmedida distribuição de recursos oficiais. Dá certo, às vezes, mas depende de muita coisa para ser durável.

Acontece que, como tudo no mundo da escassez, há um descompasso entre o querer e a realidade; enquanto a voracidade é infinita, os recursos são limitados, sobretudo, em tempos de crise econômica e fiscal. Se no princípio, o espólio deixado pelo PT pôde ser redistribuído, no médio prazo, eles se escassearam tendendo ao esgotamento.

Antes de moral, a questão é de simples aritmética: na crise, os recursos tendem a zero enquanto o descontentamento cresce em progressão geométrica. Desejo e ambição ardem, mas a fonte seca. Processos assim exigem repactuação e habilidade dos lideres para protelar recompensas num sistema que ligou o "salve-se quem puder".

Todavia, o costume cega e o sistema se nega a admitir sua fragilidade. Torna-se um crente, que confia, fundamentalmente, no final feliz. Assim, a mentalidade torna-se dependente do hábito, corrompendo a relação e despertando o vício. Ninguém se tocou que, no longo prazo, as contas não fechariam?

Acresce a isto o fato de o governo ter-se visto obrigado a queimar mais recursos, em questões paralelas. No processo movido pelo procurador-geral da República, a aflição foi tanta que o gasto resultou perdulário, tantas as concessões feitas à bancadas, corporações e lideranças. No limite da salvação, tudo foi prometido: mudanças de legislação, refinanciamentos de empresas, estados, municípios. A fonte secou.

O governo comprometeu recursos de que já não dispunha; para boa parte da base, prometeu e não pagou — e, àquilo que honrou, deixou concentrar nas mãos de caciques que limparam o pasto, deixando as bases sem chão. Revelou-se a síndrome do cobertor curto: a cabeça está aquecida, mas como resolver o frio nos pés? Deputados reclamam de ministros de seus próprios partidos.

Na retomada do esforço das reformas, o governo tornou-se o pior tipo de devedor: o cara-de-pau que, sem ter saldado a dívida anterior, outra vez bate à porta e pede mais. Vender e comprar fiado compreende toda uma arte de coordenação, confiança e cooperação. Faz parte do passado.

Hoje, o governo se esforça, mas pelos canais institucionais tudo é muito complicado. Executar orçamentos implica em burocracia e demanda o tempo que se escasseia freneticamente, em véspera de eleição. De que adianta prometer recursos se a "inauguração" chegará após a eleição? Se é que chegará.

Restariam dois caminhos igualmente duvidosos: a esperança de sucesso econômico capaz de empolgar o eleitor e favorecer as bases; ou a ação externa do empresariado, consciente da necessidade das reformas e disposto a pressionar deputados e suas bases.

Ora, se a reforma é impopular e desgastante, seu efeito na economia deveria ser certo e exuberante para que, de fato, potencialize o governo, favoreça as bases e, portanto, valha o risco. Mas, quem pode garantir o vigor eleitoral extraordinário, quase mágico, da retomada econômica?

Por sua vez, em tempos em que doações eleitorais (legais) de empresas já não são mais permitidas, a influencia do mercado é declinante. As possibilidades e a disposição de empresas e setores econômicos em contribuir eleitoralmente para as campanhas não são as mesmas de 2014, por exemplo.

"Como sair dessa?", pergunta por fim o repórter. Difícil dizer. O governo pode ter opções que desconhecemos, por pouco ortodoxas e transparentes — não seria inédito. Leviano, porém, é especular de onde viriam recursos capazes de saciar apetites, a termo; sem atiçar a mídia, o Ministério Público e a Justiça.

O pragmatismo não se prende a questões abstratas, mas também é fato que órgãos de controle são hoje muito mais concretos. Tudo fica complexo e imprevisível; o desempenho no passado não oferece saídas para o presente, respondo ao repórter. Voltando Riobaldo, o jornalista conclui: então, "é o diabo na rua, no meio do redemoinho"? É. Mais ou menos isso.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

 

Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.