O Senado não se move apenas por Aécio Neves
A quantidade de crises e escândalos dos últimos anos é tão insana que insano vai ficando o país, banalizando seus males. Na vertigem de tantos abalos e diante de deterioração veloz, a sociedade já nem se dá conta da gravidade desses conflitos. O mais recente — nem por isso o último — se refere ao ensaio de confronto entre o Senado e o Supremo Tribunal Federal que, sejamos justos, se deu em torno do senador Aécio Neves, mas não se limita a ele e nem se dá apenas por ele.
Em colapso, o sistema tenta reagir à putrefação política que já vai avançada, mas sua ação pode por fim comprometer mais um tanto o já precário estado geral das coisas no país. Um conflito entre poderes com a perda de credibilidade da última instância, o Supremo, pode deixar tudo ainda pior do que já está. Vamos aos fatos.
Por decisão da Primeira Turma do STF (3 votos a 2), Aécio Neves foi afastado do mandato de senador e teve, como medida cautelar, a imposição de recolhimento domiciliar noturno. Tudo começou quando o senador foi pego em gravação em que pedia "empréstimo" de 2 milhões de reais a Joesley Batista, personagem que, hoje, dispensa comentários. A gravação, seguida de ação monitorada pela Polícia Federal, resultara na prisão da irmã e de um primo do senador, bem como se seu afastamento da presidência do PSDB.
Se o senador ainda não foi julgado — e, portanto, não pode ser condenado sem um processo legal e justo —, a verdade é que tampouco conseguiu se justificar diante da opinião pública e de seus eleitores, que em 2014, lhe confiaram mais de 50 milhões de votos. Em paralelo, pesa sob Aécio a desconfiança de tramar, com seus pares, a obstrução das investigações do MP e da PF. Para isto, teria como instrumento os recursos do mandato que lhe conferem vantagens logísticas e políticas estratégicas.
O que se passa é mesmo uma queda-de-braço entre um processo que busca sanear o ambiente político e a resistência do sistema à depuração. A questão é: a política formal deve ou não se submeter a mecanismos externos a ela, como a Justiça, o Ministério Público, a Polícia e à diversidade da mídia ou se deve ficar exclusivamente ao cargo de partidos e parlamentares a administração de seus conflitos — os distributivos, inclusive — os "esquemas"?
A Primeira Turma do STF entendeu que um regime saudável depende de pesos e contrapesos, de controles externos, de mecanismos de fiscalização e punição; como se dá nas democracias avançadas, em vários cantos do mundo. Em virtude disto, resolveu afastar o senador. Observando restrição constitucional, não mandou prende-lo, mas impôs medida restritiva prevista no Código Penal, que lhe dificulta os movimentos.
Aflorou daí um novo debate: o Supremo pode fazer isto?
Há nesse campo muito achismo e aventura — como diz o ministro Luís Roberto Barroso, no Brasil as pessoas têm o hábito de "achar" sem, no entanto, se darem ao trabalho de procurar. Não é assunto para amadores e mesmo profissionais do Direito têm divergido na interpretação das leis. O leigo, como aqui, flutua na oscilação dessas opiniões. Na maioria das vezes, escorrega-se em preferências pessoais e juízos de valor, ajeitando o corpo no terreno da política.
De fato, a história do Brasil recomenda que o Poder Legislativo tenha salvaguardas; que "opiniões, palavras e votos" de deputados e senadores estejam, constitucionalmente, protegidos. É isto o que diz o artigo 53 da Constituição Federal e é justo que seja assim; felizmente, não há hoje no país político algum preso em virtude de suas opiniões, palavras ou votos. No entanto, a ideia de imunidade parlamentar ampla e, literalmente, indiscriminada não se sustenta formalmente.
Os casos de Delcídio Amaral, Eduardo Cunha e Aécio Neves estão longe de ferirem essa interpretação da lei: ninguém foi punido por aquilo que disse ou pela forma como votou. Delcidio tramava para influenciar e calar testemunha; Cunha, primeiro afastado da linha de sucessão, perdeu o mandato na Câmara para depois ter prisão decretada em virtude de uma série de ilegalidades.
O que pesa sobre Aécio Neves são acusações com fortes indícios — áudios e imagens — que, se não permitem que seja detido, autorizam a interpretação de afastamento do mandato para que não venha, em seu exercício, tentar obstruir a Justiça. Simples assim. Não se trata de cassação e nem de cerceamento ao direito de defesa.
No entanto, políticos reagem indignados; exigem do Senado imediata e contundente reação formal e frontal contra o Supremo — aprenderam, recentemente, com Renan Calheiros. Por que o fazem? Por qual o delito de opinião teria sido afastado Aécio Neves?
O senador tem como advogados gente do calibre do próprio Renan e de Romero Jucá, personagens a quem essa peleja do Senado contra o Supremo interessa, pessoalmente. Semear confusão e produzir tempestade seria caminho para o impasse, do qual, ao fim, poderia surgir a conciliação capaz de estancar a sangria, a que Jucá, certa vez, fez menção. O conflito institucional que se armava no início desta semana — e que ainda não foi ultrapassado — teria, no fundo, essa intenção?
Acalorados discursos em suposta defesa da democracia e das prerrogativas do Poder Legislativo são, às vezes, tapumes do corporativismo e da advocacia em causa própria praticada no Congresso. Ao contrário de Cunha e Amaral, Aécio possui blindagem. É o temor em relação ao amanhã que o protege ou busca protege-lo; medo de que a guilhotina caia e não mais pare de decepar. O nome disto não é Justiça; é política — esse tipo de política. O Senado se move por Aécio e por quase todos os seus.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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