Criadores e criaturas
A história política do Brasil é rica em criadores e criaturas que se estimulam e se anulam: Adhemar de Barros deu luz a Lucas Nogueira Garcez; Jânio Quadros, a Carvalho Pinto; Leonel Brizola, a Cesar Maia; Paulo Maluf pariu Celso Pitta. Mais recentemente, da costela de Lula nasceu Dilma. Invariavelmente, há uma sucessão de desencontros e esbarrões: em 2014, por exemplo, o ex-presidente quis voltar e a afilhada lhe fechou as portas. O resultado é conhecido.
Na prática, esses processos que quase nunca acabam bem: acusações de mandonismo de um lado; de traição, do outro. No final, resta a avaliação, latina, de que "cachorro que morde a mão do dono deve morrer de fome". Exageros. O fato é que políticos dão sopro de vida a seres que, com o tempo, se projetam para fora, conduzindo projetos próprios e subtraindo as esperanças e ilusões de poder do próprio criador. Dr. Jackyll e Mr. Hide.
O thriller passa por nova edição: de Geraldo Alckmin surgiu João Doria. Ambos contam uma velha história: dois corpos não ocupam o mesmo lugar no palanque.
Embora, ainda nada tenha de concreto para demonstrar na província, o prefeito sonha com a presidência. Na concorrência com o governador, afirma que o PSDB precisa ouvir o povo, sensibilizar-se pela melhor posição nas pesquisas; pautar-se, antes, pela chance de vencer a eleição do que disputá-la como uma Hillary Clinton marcada para morrer.
No próprio espírito do que tem sido a política, Doria faz seu jogo. É autoconfiante. Não cabem considerações e juízos valor. Em 1989, Orestes Quércia estava melhor posicionado na corrida presidencial e deixou a vez para Ulysses Guimarães — Ulysses, de fato, tinha mais predicados do que Quércia, mas ficou apenas com o sétimo lugar, naquela eleição. Fernando Collor foi eleito e o tempo de Quércia passou.
Uma oportunidade desperdiçada está perdida para sempre? Só o tempo dirá. Doria diz que não bate chapa, numa prévia, com Alckmin. Não se trata de cortesia. Sabe que o governador ainda tem o controle do partido e não se submeteria ao desgaste para perder. Passar por vítima não lhe basta; aumenta a pressão: pode ser candidato por outra legenda. "Já fui convidado por várias", diz.
É pouco provável que, uma vez eleito — por outro partido —, dispense o PSDB. Presidente da República, precisará compor; não poderá se fiar na índole de escorpião do PMDB; a recomposição com os tucanos será inevitável. Nessa hipótese, alckmistas poderiam até pagar para ver. Mas, para os cabeças brancas, política tem fila; ademais, seria perder o controle do processo. E para Alckmin não haveria outra oportunidade.
O fato é que, ao contrário de Quércia, o prefeito entende que não pode deixar o tempo passar. A sorte é fugidia e o momento uma égua a ser domada. Em sua angústia pessoal ou no seu cálculo frio, João Doria sabe que é necessário aproveitar inércia do processo que despertou, deixar-se embalar pelos ventos. Perder o movimento será perder a força, talvez, para sempre. Criar constrangimentos dos quais não se constrange nenhum pouco.
***
O prefeito ganhou impulso pelo sucesso eleitoral de 2016. Do surgimento à projeção de que seria uma espécie de Emmanuel Macron, tudo foi meteórico. Há, no mercado, ânsia por um caso nativo de sucesso eleitoral, capaz de derrotar Lula. Embora ninguém possa dizer o que o futuro ainda fará de Macron, Doria vestiria o figurino como um pastiche que dá para o gasto. Mestre em comunicação, o prefeito e se deixa levar por essas comparações desprovidas de sentido, dadas as diferentes realidades. Beneficia-se disso.
O fato é que entre "Hillarys" e "Macrons", o país pode acabar com um Donald Trump incapaz de dar conta do intrincado sistema político nacional. Ninguém tem bola de cristal, mas já se sabe as condições do próximo governo: uma economia ainda em frangalhos, políticas públicas destroçadas, estados quebrados. Um Congresso tão fisiológico quanto o atual. Despertar expectativas é preciso, mas também será necessário realiza-las. O dia seguinte é inevitável.
Na crise, tudo é rápido e vertiginoso: há pouco mais de um ano, pensava-se que o PSDB enfrentaria disputas entre Aécio Neves, José Serra e Geraldo Alckmin. Aécio virou estátua de sal; Serra peleja para voltar à cena; Alckmin resiste, mas tem agora um adversário de imagem remoçada, aparentemente, mais duro na queda. O governador o pariu de seu próprio ventre, saberá como o irá embalar?
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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