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Blog do Carlos Melo

Distritão e financiamento público são pacto de mediocridade

Carlos Melo

14/08/2017 19h24

Pedro Ladeira/Folhapress

O sistema é voltado para si mesmo, de frente para o espelho, de costas para o Brasil. Anestesiada, a sociedade apática alarga o campo da permissividade; mais uma vez, bestializada, se cala. No reino da omissão, tudo é permitido. Em colapso, carcomidos por um câncer de maus hábitos políticos, os partidos buscam a sobrevida. Reflexo disto, o Parlamento não extirpa o mal, apenas expõe aberta uma chaga purulenta.

As relações que anos a fio amigaram Executivo e Legislativo com as empresas, acabaram por desmoralizar a atividade política; perdeu-se a credibilidade e, portanto, a conexão com a sociedade. Não há convergência, consenso — talvez nem se avalie, de verdade, que é necessário um profundo processo de mudança até para que a democracia não vá por água abaixo.

De forma que somente com muita licença poética se poderá chamar de Reforma as mudanças de conveniência e conciliação que os partidos propõem e a mídia dá o nome de "reforma política". Dissimulação da mais chinfrim, voltada para a manutenção do status quo; antes de reformar, apenas escora escombros de colunas, vigas e pilastras que deveriam vir abaixo. Uma injeção de proteína que alimenta — sem saciar — vírus e bactérias oportunistas que consomem o corpo e a alma do paciente.

Sem dúvida, o sistema de voto proporcional e o financiamento privado de campanhas, com os quais o país tem convivido ao longo dos anos, levaram ao lodaçal. Voto proporcional e financiamento privado têm inegáveis defeitos. Criam distorções, como eleger Tiririca e Enéas e arrastar seus séquitos; também cobra a contrapartida por doações, que na verdade são investimentos na sordidez política.

Sim, ao longo da história, o financiamento privado, feito por empresas, gerou fenômenos como o Petrolão, o Mensalão e tantos escândalos imemoriais.

A esperteza dos deputados é, porém, partir destas premissas verdadeiras: os métodos caducaram e levaram à crise, cuja natureza é conhecida. A crise é de um poço sem fundo. Nada disso deu certo e o sistema precisa ser reformado. Quem há de negar?

Todavia, a mudança que empunham não serve para limpar o ambiente; o roto pano de chão que oferecem não permite o novo; foi enxaguado e contaminado na mesma água. Como Tancredi, personagem de Lampedusa, parte-se do princípio de que "é preciso mudar para que tudo fique no mesmo lugar".

Com efeito, não há sistema perfeito, mas o "Distritão" consegue piorar o que estava ruim. Possui todos os defeitos do sistema distrital, sem nenhum de seus méritos; não aproxima o representante do representado e desestimula a competição. Numa grande extensão de território e eleitores, favorece os mais conhecidos, os que já estão no poder; as celebridades decadentes, inibindo a entrada dos novos.

Serão eleitos os mais votados e isto tornará o sistema mais compreensível para a população; de algum modo, isto impedirá os efeitos deletérios do voto proporcional. Mas, serão os representantes distantes das regiões, quadros quase abstratos, sem vínculos necessários com o distrito — por ser demasiado grande — que os elegeu.

O FFD, que atende pelo pomposo nome de Fundo de Financiamento da Democracia, em tese, elimina, sim, a contribuição das empresas. Seria o ideal, mas na realidade concreta pode ser como retirar da sala apenas o sofá onde se deu a adultério. Nada garante que o sistema será mesmo exclusivo, que candidatos não recorrerão à empresas por meio de Caixas 2. Pior: menos transparente, o sistema não fornecerá dados que possam ser cruzados — financiamentos vis-a-vis concorrências públicas. Perdem-se os tais "elementos de prova", demonstrados pela Operação Lava Jato. O imenso iceberg ficará oculto por sob águas desse tipo.

Além disso, a imensa grana pública — algo em torno de R$ 4 bi — tende a ser repartida também por critérios de conveniência política, num pacto de mediocridade entre os mais poderosos partidos. O mais provável é que PT, PMDB e PSDB fiquem com a maior fatia do bolo para suas campanhas, sem deixar claro quais candidatos foram os mais favorecidos pelos recursos. Novamente aí, candidatos a "entrantes" serão barrados no baile.

Como já disse, não há sistema bom, imune a críticas. Assim como Churchill a respeito da democracia, temos apenas modelos menos ruins que demais. No sistema Distrital Misto, as qualidades do voto distrital — em distritos menores — mitigam os defeitos do voto proporcional, assim como este último ajuda a amenizar as falhas do primeiro. Em distritos menores, haveria competição real, os candidatos seriam conhecidos do local. Nas listas partidárias, as legendas seriam obrigadas a apresentar o que possuem de melhor, sob pena de serem desconsideradas pelo eleitor.

O eleitor, que não fica refém de uma única escolha, votará duas vezes: uma para o representante distrital, outra para numa chapa partidária proporcional. Em um ou outro caso, sabe-se para onde ou quem irá a grana.

O problema esbarra na desproporcionalidade de votos entre os estados brasileiros. Um estado como São Paulo precisaria, por exemplo, ser dividido em 35 distritos (a metade da bancada a que tem direito) de modo a que a parada ficasse mais justa. Os demais estados também deveriam ser divididos em vários distritos. A discrepância entre distritos e estados de todo país ficaria, porém, explícita.

Ficaria constatado o óbvio: há uma super-representação dos vazios populacionais do país, onde oligarquias valem mais que eleitores comuns; o princípio "um homem um voto", simplesmente não existe por estas plagas e não há interesse em instituí-lo.

Ao lado disto, a limitação dos custos de campanha e da redução da quantidade de cargos e emendas liberados, a posteriori, para composição de maiorias no Parlamento fariam, sim, uma considerável reforma. Isto posto, o país poderia discutir o sistema de governo que espelhasse uma nova ordem política: parlamentarismo ou presidencialismo, decisão submetida escrutínio da nação. Estamos longe disto. É constrangedor. O teatro de sombras oculta interesses, e esconde privilégios. Rendem artigos e manifestações intelectuais. Mais nada.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.