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Blog do Carlos Melo

De volta às ruas, Lula sepulta o “Lulinha paz e amor”

Carlos Melo

21/03/2017 08h41

"Deus e o Diabo na terra do Sol" (Glauber Rocha, 1964)

Lula sacodiu a poeira; saiu do luto, foi à luta. Reassumiu a persona política do líder popular de incomum habilidade de comunicação e rara sintonia com a massa. Está de volta às ruas, seu habitat de origem e ninguém o consegue imitar. Atendendo a pedidos, lança-se ao mar eleitoral, erguendo a bandeira da esquerda e o pretenso legado da defesa dos pobres; veste figurino de vítima e se defende com as armas que tem.

Nos últimos dias, seus detratores escarneceram o show de comunicação que deu em depoimento à Justiça. Depois, viram com desdém sua participação em manifestação contra as reformas, na Avenida Paulista. Por fim, agora, fazem muxoxo, reticentes diante de messias redivivo, nos braços do povo, na transposição das águas do São Francisco. Para preocupação de muitos, Lula volta a ser o Lula pretérito, de antes de 2002.

Pode-se gostar ou não da pessoa e do personagem; pode-se querer vê-lo novamente presidente da República ou atrás das grades. Pode-se glorificar sua história e superdimensionar as marcas de seu governo; ou, por outro lado, desqualificá-lo negando-lhe méritos e qualidades. Só não é razoável ignorar os vínculos que possui com a degeneração ética que rasga o Brasil há tempos ou negar-lhe habilidades políticas especiais, apesar de erros mais que sabidos.

Sabem os tucanos o que é menosprezá-lo: o venceram, no primeiro turno, em duas oportunidades (1994 e 1998) quando limitado era pelo paredão da rejeição; mas, também comeram poeira em 4 embates, quando o ex-metalúrgico soube desvencilhar-se do gueto ideológico e ampliar o discurso para setores médios — 2002 e 2006 por ele mesmo; em 2010 e 2014, com Dilma, sua danação.

Dizer que é sobrevivente é também clichê. Ainda assim, reconheça-se a capacidade de resistir a adversidades. A movimentação presente não lhe garante, é certo, a ressureição após este período em que muitos ainda o dão como morto. Todavia, o banho de rua dos últimos dias indica que Lula, se cair de vez, cairá de pé.

Mas, por enquanto, é só isto. De concreto, até aqui, o que o ex-presidente indica é que aumentará, sobremaneira, os custos para seus adversários. Seja na eventualidade de uma condenação, em que dramatizará enormemente o processo; seja na eleição, quando mobilizará parcela significativa do povo que sumira de cena no episódio do impeachment de Dilma.

Por outro lado, contudo, dar-lhe a vitória como garantida é outro erro de seus seguidores: as condições lhe são as mais adversas: se é fato que possui o maior piso de intenção de votos — 25%, de acordo com a última sondagem do Datafolha –, é também verdade que registra não apenas descomunal mas particular rejeição – em torno de 44%, pelo mesmo instituto.

Superar o patamar negativo, o terrível desgaste com Dilma e a Lava Jato, transpondo a barra dos 50% mais 1 dos votos nem é a missão mais impossível — no Brasil, nada mais parece impossível. O inusitado será voltar a ampliar na direção de setores médios urbanos, que um dia estiveram ao seu lado; contornar interesses e apaziguar o país; garantir alguma tranquilidade e segurança. Reginas Duarte — "eu tenho medo" – aparecerão às pencas, os conflitos em respostas à sua reaparição explodirão em todas as faixas da sociedade.

O "Lulinha paz e amor" de 2002, produzido por Duda Mendonça, este sim está definitivamente morto. A conjuntura já não comporta um Lula conciliador e ele sabe bem disto. Por isso, vai às ruas, já com o codinome "jararaca", para se confrontar com reformas que, no governo, ele próprio faria – e não mais fará se, um dia, voltar a governar porque, desde já, passou do ponto de retorno. Aquele Lula não volta mais.

É o Santo Guerreiro diante de dragões da maldade que ele mesmo define. A figura divertida e cordial retratada por João Moreira Salles, em Entreatos (2004) ficou no passado. Da poeira do chão, pinta o rosto com as tintas da guerra: vestido de gibão de couro, gira em torno do próprio eixo. Uma voz lhe grita: "se entrega Corisco". E ele responde: "eu não me entrego não. Eu não sou passarinho pra viver lá na prisão".  Deus e o Diabo estão soltos na terra do sol.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

 

Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.