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Blog do Carlos Melo

São muitos os bobos da corte

Carlos Melo

02/03/2017 10h34

Em depoimento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ex-presidente do Grupo Odebrecht, Marcelo Odebrecht, teria afirmado ser "o bobo da corte do governo federal", o "otário do governo". É evidente que não se pode falar que Odebrecht foi simplesmente usado, nem sua reconhecida inteligência lhe permitiria passar por inocente. Ainda assim, está claro que o empresário se refere a um jogo marcado desde tempos imemoriais, no Brasil. Jogo do qual, agora, se arrepende ter praticado.

Trata-se de um esporte de regras bastante rígidas; impõe um postulado básico: quem não está dentro do esquema está fora do governo e de seus negócios. Este jogo se reproduz Brasil afora – e em vários outros países também. Está na União, nos estados e nos municípios; em todos os escalões, passa por milhares de agentes: dos políticos com mandatos, aos nomeados; está nas assessorias e nos quadros de carreira. Em muitos casos, é condição sine qua non para ascensão social e elevação nas carreiras.

Claro que não abraça a todos; muitos – talvez a maioria – passam ao largo desses esquemas; há, sim, gente honesta no Estado tanto quanto nas empresas. Mas, é importante compreender que ele faz parte de uma lógica que por séculos foi "naturalizada" no país. Cumpre reconhecer que essa lógica ronda a sociedade também.

Se estende dos grupos de interesses, que se agarram a privilégios, ao cidadão comum que fura fila, dá caixinha por deferências, paga propina pelo "gato" nosso de cada dia. Está na lógica do "personalismo" do sujeito que se sente superior e não aceita se submeter à normas e procedimentos universais.

Sérgio Buarque de Holanda apontou isto há mais de 80 anos (Raízes do Brasil, Capítulo I, Fronteiras da Europa), disse também que "no Brasil, a democracia sempre foi um lamentável mal-entendido". Outros autores enfatizam a complexidade daquilo que, com orgulho e ignorância, chamamos de "jeitinho" – a geniosa criatividade que pode ser, ao mesmo tempo, burla e atropelo de regras. Nessa cultura, a maior ofensa é ser chamado de "otário".

Os bobos das cortes residem, então e no fundo, numa concepção equivocada a respeito de democracia, que entende ser, a democracia, um regime de liberdade e diretos plenos sem limites, que, em países carentes como o Brasil, descamba para a formulação popular "farinha pouca, meu pirão primeiro". Essa mentalidade transforma a todos em lobos; a vida, no império dos mais fortes.

Democracia, no entanto, é, antes de tudo, um regime de qualidade, de direitos, sim, mas também de deveres; de valores que dependem de vigilância, de pesos e contrapesos. De instituições que criem filtros e mecanismos para que os lobos e os fortes não imperem.

A oposição no Brasil está, de verdade, menos na contradição direita versus esquerda – as diferenças aí parecem ser mais de cunho literário, de estilo; perfunctórias, quase, carregadas em certezas e na arrogância dos que se acreditam portadores de verdades.

A verdadeira oposição brasileira mora, antes, entre republicanos ou não; entre os que separam o público e o privado ou os confundem; os que descartam qualquer forma de patrimonialismo ou o assimilaram por atavismo social. Deriva daí toda a concepção que se possui a respeito de temas como igualdade, direitos e deveres, justiça social.

Enfim, quando tudo dá certo o esperto se sente um leão; rei da selva. Quando dá errado, deprime-se por "pagar papel de otário". Já se disse que a esperteza quando é demais cresce e come o esperto. Nesse ambiente, somos todos engolidos; de algum modo, somos muitos os bobos da corte.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper

Sobre o Autor

Carlos Melo é paulistano, filho de açorianos e nasceu em 1965. Cientista político, com graduação, mestrado e doutorado na PUC-SP. Professor de tempo integral do Insper desde 1999; colecionou experiências, conquistou prêmios de ensino. Analista político, com colaboração em vários meios de comunicação; palestrante e consultor. Autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

Sobre o Blog

Juízos de valor não importam, o leitor que construa os seus. O que se busca é a compreensão, sem certezas, nem verdades; antes, a reflexão. É o canto de um homem sem medo de exalar dúvidas. "Nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento", diz Spinoza; "eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa", arremata Guimarães Rosa.