Sobre carnavais, surdos e cinzas
Com a folia e a preguiça do Carnaval, o tempo da política assume um compasso de espera como se apenas o surdo soasse, fazendo a marcação do samba interrompido. É bom, a vida precisa dessas janelas; elas permitem observar a paisagem, sem pressa e agonia; com calma e algum distanciamento. No intervalo da bateria, dá-se voz aos passistas e se percebe a riqueza (ou não) das fantasias.
Sim, o feriadão e o olhar perdido permitem pensar na política de modo menos factual e episódico – as notícias não atropelam; não há notícias –, tornando possível perceber como o conflito tem reverberado dentro de todos nós. Busca-se, então, algo mais essencial que os escândalos que giram em torno da Operação Lava Jato. Faz com que se pergunte: onde mesmo tudo se perdeu?
Em 2002, parecia que tudo confluía de acordo com a civilizada transição entre os governos FHC e Lula; o Brasil haveria deixado de ser Brasil? Nos primeiros anos de PT – quando nada se assemelhava mais com um tucano do que um petista no poder –, a sociedade se acalmou; aparentemente, a racionalidade se estabelecera: a estabilidade da moeda, o respeito aos contratos, a necessária inclusão social… O fim de uma história de desacertos; o gigante despertara para a felicidade. Lula terminou seu segundo mandato com 83% de aprovação.
Mas, foi uma tola ilusão em retalhos de cetim: para pouca taba, havia caciques demais; os vícios elementares da política estavam ainda todos lá: disputa por espaço, vaidade, a atração e a incontível expansão do poder. O bom momento da economia, péssimo conselheiro, trouxe o desmazelo ético, a incúria com recursos públicos, a soberba. "Nunca antes na história do país" o sistema político era tão ele mesmo. As instituições, careciam de aperfeiçoamento, o que, por fim, faltou.
Aos poucos a polarização se fez porque se faz onde tudo é nada além de disputa, som e fúria: "nós contra eles", "petralhas", "tucanalhas", "coxinhas", "mortadelas"; desqualificações a granel que desqualificaram o próprio debate. O país se dividiu e as redes sociais foram, ao mesmo tempo, expressão e combustível para isso.
As redes, a propósito, conformam-se como um ator à parte: se expandem a participação – o que é bom –, também aviltam o debate, dando voz aos "valentões de teclado" e realçando a cultura política de pouca tolerância. Na exaltação da confusão democrática, eliminam a possibilidade da construção de consensos. São os novos tempos – e não somente no Brasil.
Hoje, uma tempestade de idiossincrasias assoma-se sobre qualquer discussão política. E tudo parece estar contaminado pelo estéril debate de autoproclamadas esquerdas e direitas que parecem existir não como um fim, mas apenas para ser o contraponto do outro. Não há foco, logo não há muito o que esperar do futuro.
Em São Paulo, uma escola símbolo do construtivismo de esquerda dos anos 1980 – a Escola da Vila — foi vendida a um fundo cujo alguns de seus proprietários são vinculados a setores que, com suas razões, se rebelaram contra o PT e, de algum modo, sorriram para figuras como Jair Bolsonaro. Os novos controladores negam qualquer ligação, mas a relação está dada. A suposta nova filosofia do fundo tem aderência de parte do pais, mas é lógico que de muitos outros não – muito pelo contrário. O conflito entre as mais diversas visões de mundo vai aos poucos se estabelecendo.
A mudança atinge um pacto de tolerância que vigia implícito e calado nos últimos anos. Mas, agora nada parece mais contraditório entre si e o clima que se estabelece é o mesmo do país, o das tais borrascas idiossincráticas da internet. E é difícil responder como tudo isso foi possível e, ainda mais, aonde vai dar.
Idealmente, o debate deveria se dar sobre a futura convivência, com diversidade, tolerância e democracia; projetar o crescimento humano daquela comunidade num mundo diverso e em conflito seria o desafio. Mas, os alunos – crianças e adolescentes — se veem expostos ao mesmo tiroteio ideológico que tomou conta de quase tudo no país. E assim, se o passado forja o presente, o presente já compromete o futuro. É só um exemplo.
No geral, o ritmo dos surdos demarca o Carnaval e dificulta o diálogo sobre o país: a intolerância, que se estabelece e se expande, ganha a avenida e interdita a convivência com diversidade. Retira o foco de questões essenciais; a incapacidade de ouvir calcina o solo e impede ao novo brotar. Tudo isto faz do Carnaval apenas a expectativa para muitas quartas-feiras de cinzas.
NOTA: Em nome da transparência, é preciso informar que meu filho é aluno da Escola da Vila.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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